USP e universidade francesa criam consórcio para pesquisar anemia falciforme

Cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Paris-Diderot, da França, criaram o Consórcio Internacional em Hematologia (International Network in Hematology) com o objetivo de promover a colaboração em pesquisas voltadas a melhorar o diagnóstico e o tratamento da anemia falciforme e outras doenças do sangue.

De acordo com Belinda Simões, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e uma das coordenadoras do grupo, a intenção é promover o intercâmbio de pesquisadores e estudantes das instituições, além de facilitar a obtenção de verba das agências de fomento para pesquisas em conjunto.

“A anemia falciforme é a doença hereditária mais prevalente no Brasil e estima-se que existam mais de 50 mil afetados. É uma questão de saúde pública no país e, por isso, vamos nos centrar nesse tema inicialmente. O consórcio também trabalhará com falências medulares, como é o caso da anemia aplástica, e doenças autoimunes, como diabetes e esclerodermia”, contou Simões, pesquisadora do Centro de Terapia Celular (CTC) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP.

Mais comum em populações afrodescendentes, a anemia falciforme é causada por uma alteração genética na hemoglobina, proteína que dá a coloração avermelhada ao sangue e ajuda no transporte do oxigênio pelo sistema circulatório.

Essa alteração faz com que as hemácias – glóbulos vermelhos do sangue – assumam a forma de foice ou meia-lua depois que o oxigênio é liberado. As células deformadas se tornam rígidas e propensas a se polimerizar, ou seja, a formar grupos que aderem ao endotélio e dificultam a circulação sanguínea.

Além de inflamação constante, esse processo vaso-oclusivo pode causar necrose em vários tecidos e crises de dor intensa. É comum o aparecimento de úlceras nas pernas, descolamento de retina, priapismo (ereções prolongadas e dolorosas), acidente vascular cerebral, infartos, insuficiência renal e pulmonar. A doença também compromete os ossos, as articulações e tende a se agravar com o passar dos anos, reduzindo em cerca de 25 a 30 anos a expectativa de vida.

“Estamos tentando identificar centros de excelência em todo o mundo para estabelecer protocolos comuns de pesquisa e, com base nos resultados, criar diretrizes para a doença. O CTC de Ribeirão Preto é um desses centros. Estamos oficializando uma parceria que já vem de longo tempo”, afirmou Eliane Gluckman, professora de Medicina na Universidade Paris-Diderot e responsável pelo primeiro transplante de células-tronco de sangue de cordão umbilical do mundo.

O objetivo da colaboração, segundo Gluckman, é não só buscar bons métodos para diagnóstico e tratamento da anemia falciforme como adaptá-los para países em desenvolvimento. “A maioria dos pacientes está na África ou na Índia e não tem acesso a cuidados básicos. Mas isso não será fácil, pois nem em nossos países [França e Brasil] estamos diagnosticando e tratando da forma mais adequada”, afirmou.

Segundo Gluckman, o único tratamento capaz de curar a anemia falciforme é o transplante de células-tronco hematopoiéticas, que podem ser obtidas da medula óssea de um doador compatível ou de bancos públicos de sangue do cordão umbilical.

“No Brasil, esse procedimento ainda não é reconhecido. Nos Estados Unidos, por exemplo, foram transplantados pouco mais de 600 pacientes, quando a estimativa é de que aproximadamente 100 mil tenham indicação para o tratamento. Na Europa, também são pouco mais de 600 transplantados”, afirmou Gluckman.

Panorama brasileiro

De acordo com Simões, 21 portadores de anemia falciforme já foram submetidos ao transplante de células-tronco hematopoiéticas no Brasil – 14 deles no CTC. “Desses, apenas três morreram (apenas uma em Ribeirão Preto) e não por causa do transplante, mas por complicações de saúde causadas pela doença em estágio avançado”, afirmou.

Mas o procedimento ainda é considerado experimental pelo Ministério da Saúde e, portanto, não é ressarcido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Aguardamos há muito tempo a revisão dessa portaria. Eles argumentam que ainda não há evidências científicas suficientes para aprovar o tratamento, mas já há mais de 1.200 transplantados no mundo e o índice de sobrevida é de 94%. Os pacientes ficam completamente curados. Nem leucemia nem nenhuma outra doença em que há indicação para esse tipo de procedimento tem índice de sucesso tão alto”, disse Simões.

A pesquisadora acredita que a aprovação do transplante para tratar anemia falciforme seria uma opção mais barata para a rede pública do que o tratamento das complicações da doença ao longo de toda a vida dos pacientes. Segundo Simões, uma das metas do consórcio será justamente fazer essa comparação de custos.

“No caso dos pacientes em regime de exsanguineotransfusão (troca lenta e sucessiva de pequenas frações de sangue), por exemplo, um mês e meio de tratamento já cobre o custo do transplante. Temos o caso de um paciente de 38 anos que a cada 15 dias fazia esse procedimento, não trabalhava e não pagava impostos. Depois do transplante, ele conseguiu estudar e hoje tem um emprego e não custa mais nada para o governo”, exemplificou a médica.

Além disso, acrescentou Simões, apenas 20% dos portadores de anemia falciforme têm indicação para transplante de acordo com o protocolo usado nas pesquisas brasileiras, que exige, entre outras coisas, que o doador seja um irmão compatível. “Só com esse pré-requisito o número de pacientes elegíveis cai muito. Há países que aceitam que a mãe seja doadora ou usam sangue de cordão umbilical. Mas, como no Brasil há esse problema de verba, preferimos começar apenas com irmãos e depois expandir”, disse.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que “a indicação do transplante de medula óssea alogênico foi incluída na discussão da atualização do regulamento técnico de transplantes do país, com previsão de publicação no segundo semestre deste ano”.

Acordo

Os 11 pesquisadores que integrarão o Consórcio Internacional em Hematologia estiveram reunidos nos dias 9 e 10 de maio, durante o Simpósio em Hematologia e Imunologia USP-Paris-Diderot. O evento foi realizado no âmbito de um acordo de colaboração científica entre a USP e a Universidade Paris-Diderot assinado no mês de maio, que abrangerá também outras áreas da ciência.

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