Publicado em setembro 23, 2021 por erasmomartins
Amazônia ribeirinha, Amazônia de fronteira, Amazônia indígena, urbana, de assentamentos, do agronegócio, do narcotráfico, Amazônia preservada, Amazônia super explorada. Longe de ser um espaço homogêneo, na Amazônia brasileira subsistem diversas formas de ocupação. Destacando alguns elementos da teoria social de Boaventura de Souza Santos, o artigo de Michele Rocha El Kadri, do Instituto Leônidas e Maria Deane; e Carlos Machado de Freitas, da ENSP, discute como o problema do tempo linear e da escala dominante no pensamento hegemônico vem servindo para invisibilizar os territórios amazônicos na organização das ações públicas de saúde.
O artigo
Um SUS para a Amazônia: contribuições do pensamento de Boaventura de Sousa Santos, publicado na revista
Ciência & Saúde Coletiva n° 26 (Supl. 2), aponta, ainda, que consolidar um SUS pós-abissal na região passa inevitavelmente por uma repactuação do papel econômico e desenvolvimento social inclusivo com a Amazônia, e não apesar dela. Por fim, reflete se a construção do SUS local deveria se basear em um tripé, não exclusivamente urbano centrado, que considere sua extensão territorial, densidade populacional e vias pelas quais os fluxos de acesso aos serviços de saúde acontecem.
A proposta do texto é, segundo os autores, a partir de alguns elementos da teoria social de Boaventura de Souza Santos, pensar a região para além do pensamento hegemônico que, via de regra, vem produzindo leituras no campo da saúde que a localizam como lugar da doença, da incipiência de processos organizativos, do vazio e da vulnerabilidade, e que desconsideram tamanha heterogeneidade.
Destacam-se duas questões, dizem os autores: o problema do tempo linear e da escala dominante, para discutir como servem para invisibilizar os territórios amazônicos no planejamento das ações públicas de saúde. Por fim, eles apontam para a ideia de que consolidar o SUS na região passa inevitavelmente por uma repactuação do papel econômico e do desenvolvimento social inclusivo, com e para as pessoas que aqui constroem suas histórias e dão sentido a este lugar.
Essa discussão sobre o papel da Amazônia no cenário de desenvolvimento nacional nada tem de local, explicam eles, considerando que ela é essencial na irrigação das terras agrícolas que garantem a exportação dos principais produtos do país, assim como o balanço hídrico das bacias que fornecem água a milhões nas cidades no Sul e Sudeste brasileiro. Também não é irrelevante sua importância na regulação do clima global. “As reflexões apresentadas ampliam a discussão e apontam como o modelo de desenvolvimento econômico e social atual concorre para aprofundar as desigualdades com a marca cartográfica abissal que separa o Norte e o Sul do país”.
Neste trabalho, os autores destacam dois conceitos para aprofundar reflexões importantes que ajudam a apontar como a realidade amazônica tem estado com frequência ausente de diretrizes que orientam a construção do SUS. “A primeira é a racionalidade do tempo linear, que é diferente do tempo vivido pelas comunidades amazônicas que em grande medida têm suas vidas orientadas pela sazonalidade do ciclo das águas. O segundo ponto é o problema da escala que influencia naquilo que é visto ou invisibilizado numa política universal como o SUS”.
Para eles, essas questões oferecem elementos relevantes para entender como a dinâmica desse território desafia uma outra lógica de organização do sistema de saúde, e que, se bem acolhida pelo planejamento, pode ajudar na construção de um SUS pós-abissal com e para a região.
Os autores concluem que o pensamento abissal, que evidencia a dominação econômica, política e cultural de uns lugares em detrimento de outros, sustenta o discurso hegemônico que cria ausências onde na verdade há muitas presenças. “A linha que coloca a Amazônia no lugar do atraso em uma hierarquização de saberes, tempo e escala tem produzido injustiças e desastres recorrentes, resultantes de intervenções inadequadas, públicas e/ou privadas, em função do desconhecimento, intencional ou não, desse lugar”. Para que a universalização do SUS produza redução de desigualdades, garantindo saúde como condição básica para o desenvolvimento na Amazônia, é preciso aumentar a escala de análise e focalizar alternativas mais coerentes com o lugar, apontam.
Eles destacam o desafio peculiar para a gestão local de consolidar o sistema em um território de tamanha extensão territorial, com dinâmica de ocupação não urbano-centrada e com fluxos que não se dão invariavelmente por via rodoviária. “Enquanto persistir o não reconhecimento desse território em toda a sua história, seus ecossistemas e suas culturas, não será possível construir uma alternativa pós-abissal que vença a exclusão que o tem mantido do lado de lá da linha. Inovação tecnológica que gere valor para a biodiversidade, ciência que reduza iniquidades, ecologia de saberes que compartilhem conhecimentos (e também ignorâncias) podem apontar potenciais soluções”.
Por fim, defendem que discutir a preservação da Amazônia é importante, mas alternativas econômicas que impactam diretamente as condições de vida e a saúde daqueles que aqui residem é o debate fundamental a fazer.
Foto: Radis