“De que tipo de visibilidade estamos falando?”, questiona a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, uma mulher trans negra, assim que é perguntada sobre o tema em entrevista à Agência Brasil. Neste domingo (29), Dia da Visibilidade Trans, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), alerta que a transfobia e a violência são uma realidade que precisa ser exposta, mas que a promoção da saúde mental requer que a visão da sociedade e da população trans sobre si mesma seja estimulada a ir além da denúncia de que há um risco iminente de sofrer violência, da falta de acesso ao mercado de trabalho e da baixa expectativa de vida.
“No Brasil, a visibilidade trans tem sido muito pautada a partir de dados de violência letal. As pessoas muitas vezes conhecem a realidade da população trans somente por essa lente do ‘somos do país que mais mata pessoas trans no mundo’, em termos absolutos. Essa é a imagem que fica”, afirma a pesquisadora, que avalia que isso impacta a política pública e a produção de conhecimento sobre a população trans.
“Geralmente, as políticas públicas e como se pensa a população trans se reduzem a dados como esses, ou dados sobre a precariedade laboral. Eles são fatos. Mas o que significa só reproduzir esses fatos?”
A pesquisadora coordena no Brasil o estudo global SMILE (Saúde Mental de Minorias Sexuais e de Gênero), que investiga a saúde da população LGBTQIA+ em países de renda baixa e média e se debruça sobre dados do Brasil, Quênia e Vietnã. Além disso, Jaqueline preside a Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura e também é professora de psicologia no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Ela alerta que a visão única sobre a população trans como vítima da violência e exclusão tem um impacto severo sobre a saúde mental.
“Essas notícias constantes de violência e de assassinato e da limitação da expectativa de vida das pessoas trans, principalmente entre os jovens, isso tem um impacto direto na suicidabilidade, na exposição ao risco, e também em outros fatores como ansiedade”, explica. “É importante que criemos condições para que a população trans seja vista e também se veja de forma mais positiva, com expectativa de sair dessa condição de exposição ao risco de violência e de transfobia. E não apenas que seja visível nessa condição”, defende.
Jaqueline Gomes de Jesus reforça que essa mudança de foco não significa esconder a grave realidade de violência da qual as pessoas trans são vítimas, mas sim reconhecer a população trans na sua pluralidade e na sua potência, criando condições para que ela seja visível de outras maneiras.
“É ter a realidade como um dado, mas criar condições de visibilidade para que as pessoas trans possam se ver em lugares potentes, transformadores, e possam ocupar esses lugares e ser vistas na sociedade nesses lugares. É isso que vai criar saúde mental para a população trans na nossa cultura.”
Essa virada requer condições efetivas de acesso da população trans aos espaços de comunicação, Justiça, saúde e outros não apenas como usuárias, mas como profissionais e produtoras desses saberes, diz a psicóloga. Ela defende que haja ações afirmativas para a contratação de pessoas trans no setor público e privado, e também para acesso aos espaços de formação e produção de conhecimento.
“Quantas pessoas trans temos na imprensa e nos meios de comunicação de forma geral produzindo conteúdo enquanto jornalista? Enquanto comunicadores? Estamos criando ações afirmativas para termos mais pesquisadores e pesquisadoras trans? Nossos juízes, advogados e médicos são pessoas trans também? É preciso um salto além.”
A data escolhida para celebrar o Dia da Visibilidade Trans, 29 de janeiro, faz referência à mobilização ocorrida em 2004 na Câmara dos Deputados, para a campanha “Travesti e Respeito”, que levou a um inédito ato de pessoas trans no Congresso Nacional. A pauta central, na época, era justamente a promoção da saúde.
Depressão e ansiedade
A pesquisa com populações LGBTQIA+ de diferentes países permite a Jaqueline Gomes de Jesus enxergar a transfobia como um fator que contribui de forma constante para casos de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade e suicídio. Mas cada país apresenta uma realidade diferente, em que transtornos mentais que já são mais prevalentes na população em geral ou em grupos específicos são reforçados no caso dos transexuais.
“Na população trans, a gente vê altas taxas de suicidabilidade, com idealização, planejamento e até execução de casos de suicídio principalmente entre homens trans, e, particularmente, negros. E isso converge que no Brasil também são os homens negros os que mais tentam se matar. Há convergências em termos de gênero e de contextos culturais.”
O estudo conduzido há cinco anos pelo grupo do qual a psicóloga brasileira faz parte busca produzir evidências para tratamentos focados na população LGBTQIA+. O trabalho é reconhecer quadros de saúde mental específicos dessa população e propor novas abordagens.
“Falta muito tratamento em saúde mental baseado nos dados de cada cultura para questões como depressão, tristeza, ansiedade, alcoolismo e várias questões que afetam a população LGBT. E aí a gente tira os dados para poder pensar em cada grupo pormenorizado.”
Fortalecimento
A pandemia de covid-19 foi um período de agravamento de questões de saúde mental em muitos grupos populacionais, e a psicóloga Marcelle Esteves, conselheira e coordenadora de saúde do Grupo Arco-Íris, viu de perto que a população trans passou por dores específicas. A organização não governamental prestou assistência psicológica a 2.530 pessoas durante a pandemia, e, entre elas, 884 pessoas trans.
“Foram momentos em que só quem estava olhando de frente e pôde ouvir sabe a dor de muitas pessoas trans que inclusive precisaram voltar para os espaços de onde já tinham saído, voltar às suas famílias. E muitas pessoas precisaram se descontruir enquanto trans para poder permanecer nesses espaços e ter comida e onde morar. Foi um período violento.”
A psicóloga, uma mulher negra e cisgênero, descreve o “novo normal” a que a sociedade voltou depois dos períodos mais agudos da pandemia como um “velho anormal”. “Não sei para quem é novo. Para a população LGBT, pra população preta, não tem nada de novo. Nada do que essas populações passaram na pandemia foi novo para eles. Eles já passavam isso, mas vivenciaram num grau hard“, diz ela. “A gente ainda vê e vai ver durante um tempo as sequelas desse período em que muitas pessoas vivenciaram a solidão.”
Marcelle Esteves vê uma total convergência entre a visibilidade trans e a promoção da saúde mental, especialmente após a pandemia. A psicóloga afirma que a a visibilidade é também uma forma de fortalecimento mental para uma população que muitas vezes não tem acolhimento familiar e sofre discriminação em espaços como o educacional. “Dar visibilidade interseccional à população trans é também dar garantia de um processo de saúde como um todo e de cidadania plena para essa população”, diz. “Se eu não me vejo, eu não me reconheço. Seu processo de identificação e reconhecimento é parte de como você se olha no mundo, de como você se percebe e percebe que tem outras pessoas iguais a você. Se eu não me vejo e não me reconheço, eu não existo, eu não estou. Ainda falta visibilidade no sentido do pertencimento.”