Radis destaca trabalho da equipe do Consultório na Rua

Antes de chegar à rua Flávia Farnese, Daniel de Souza guarda na mochila o colete azul marinho com muitos bolsos e letras brancas graúdas que o identificam como integrante da equipe de Consultório na Rua de Manguinhos. O uniforme era para ser de grande ajuda, mas em vez disso, já causou muito mal-entendido. “As pessoas acham que somos da polícia e se afastam”, ele explica. São 9h40 da manhã de uma sexta-feira de setembro e vai começar mais uma visita semanal a um território situado na Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro. O local também é conhecido como “Cracolândia”, “cena de uso” ou “Condomínio da Fumaça” — para usar um apelido adotado pelos próprios moradores. Mas é muito mais do que isso. Rua Farnese, s/n, é o endereço de pelo menos 72 pessoas — a casa delas.

Faz um dia nublado. O Rio está cinza, quando a van que leva a médica, a psicóloga residente, a assistente social e Daniel, o articulador da equipe, estaciona na região — que na geografia complicada da cidade é dominada pelo Comando Vermelho. Na calçada, um senhor dorme sobre sacos, indiferente ao vai e vem dos profissionais da saúde, à curiosidade da jornalista e ao copinho sujo com excrementos que alguém já chutou. A alguns passos dali, homens e mulheres dividem barracos, baseados, guimbas, pedras, thinner, comida, dias e noites, a vida.

Como velhos conhecidos, um a um, os moradores vão sendo acolhidos. É o caso de Camilinha [vamos chamá-la por um pseudônimo, assim como os demais personagens desta reportagem]: “Caiu lança-perfume no meu olho!”, ela reclama, aflita e chorosa. Examinam-lhe a vista, orientam, aplicam um colírio. Mas esse não é o único problema da mulher. Em longa conversa com os profissionais da saúde, pouco depois, ela vai ter ajustadas as receitas para o tratamento da tuberculose e da depressão, com as quais vive faz um tempo. Também há preocupação com a hipertensão do seu Hélio. Com Débora, a médica Marina Borges revela que precisa tratar de vários assuntos, mas no estado em que a moça se encontra, a consulta não será fácil. Débora está agitada e chega oferecendo o braço em sinal de que o seu corpo está disponível para coleta de sangue. Todos lhe chamam por uma alcunha carinhosa e ela tem uma grave lesão ocular provocada por uma lente de contato que derreteu no olho.

A equipe de Manguinhos é uma das 158 que atuam nos mais de 5 mil municípios do país — pouco, para assistir a uma população estimada em cerca de 222 mil pessoas, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Implementado em 2011 como parte da Política Nacional de Atenção Básica, o Consultório na Rua é uma estratégia do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender pessoas em situação de rua com abordagem multiprofissional. Dito de outro modo, é uma possibilidade efetiva de acesso e cuidado de qualidade para uma população em geral excluída das políticas públicas.

Diferentemente do que costumam pensar os desavisados, não se trata de uma equipe de busca ativa que vai até essa população apenas para encaminhá-la a uma unidade de saúde. “Mas de uma equipe de saúde da família como a que atende a mim e a você”, adverte Marcelo Pedra, psicólogo sanitarista e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Pop Rua (Nupop), da Fiocruz Brasília. Como uma equipe de atenção integral, sua atuação vai desde a promoção de saúde, passando pela vigilância e vacinação, até o cuidado da pessoa que tem problemas com álcool e outras drogas. Isso significa que ela está tanto no território, construindo vínculos, pensando diagnósticos e fazendo todo o processo de cuidado — em muitos casos, até mesmo os exames preventivos acontecem a céu aberto — quanto na unidade básica de saúde realizando os atendimentos que chegam por demanda espontânea ou a partir do trabalho na rua.

Naquela manhã, enquanto está em campo, Daniel atende a uma ligação que reflete os muitos desafios de uma equipe de Consultório na Rua. Do outro lado da linha, a interlocutora informa que há um paciente em uma clínica de um dos bairros acompanhados pela equipe “que tem cara de morador de rua”. Ela queria saber como proceder, uma vez que o paciente agia de forma agressiva, ameaçando os profissionais. A equipe discute o caso, conversa entre si, especula. Mas o que realmente preocupa a todos é o tom utilizado na fala da interlocutora, uma profissional da saúde, que ainda reflete o estigma que pesa sobre as pessoas em situação de rua.

A “cara do morador de rua” tem mudado na última década, sobretudo com a pandemia de Covid-19, que agravou o desemprego e acabou levando famílias inteiras para a rua — no Rio de Janeiro, censo realizado pela Secretaria Municipal de Assistência Social, em 2020, apontou que cerca de 20% das pessoas em situação de rua perderam a casa durante esse período. Para Marcelo Pedra, aquele perfil caricato que associa quem está em situação de rua apenas a problemas com droga, distúrbio familiar ou falta de grana, está ficando para trás. “Nós estamos falando de pessoas que estão em condições de vulnerabilidade e cuja situação econômica e a fragilidade dos vínculos da vida em sociedade se radicalizaram muito”. Nesse cenário, acrescenta o pesquisador, ainda que prevaleça uma população predominantemente negra, de baixa escolaridade, com cada vez mais mulheres, a rua segue heterogênea agregando vulnerabilidades distintas.

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