Radis destaca luta por inclusão de pessoas com deficiência

A trajetória de Laís Silveira Costa e de sua filha, Camila, de sete anos, é uma luta constante para garantir que a inclusão seja para todo mundo. As experiências de preconceito foram tantas que a mãe aprendeu a entender os códigos, ditos e não-ditos que dificultam ou impedem o acesso de sua filha, que tem síndrome de Down, a um direito básico, que é a educação. Na pandemia, Laís entrou em desespero ao ver que as aulas remotas não atendiam às necessidades de aprendizagem da menina. Ao cogitar trocar a filha de escola, ela se deparou com certo desprezo ao telefone, com um recado nas entrelinhas de que ela poderia fazer isso se quisesse. “Foi uma violência. Em vez de ver realçado o direito de minha filha estudar em uma escola regular, a coordenadora realçou o meu direito de sair de um lugar do qual saio a hora que eu quiser”, conta.

Recentemente, ao buscar uma escola que se diz “inclusiva”, notou a mudança no tom de voz da coordenadora quando disse que a filha tem deficiência intelectual. Segundo Laís, a profissional deixou de ser receptiva ao ingresso da menina e repetiu que não sabia se haveria vaga na escola. Laís insistiu na pergunta. “Para mim estava claro o que ela falou. Eu já não queria saber se tinha vaga para Camila, mas se eu iria querer mesmo que minha filha estudasse naquela escola”, observa. A partir daí, a mãe relata que, como em um roteiro já conhecido e mal escrito, a conversa deixou de fluir. “Isso acontece por causa da desumanização, da hierarquização entre seres humanos e da histórica patologização da normalidade”, reflete. Na prática, o preconceito que se manifesta no chão da escola rouba o direito à maternidade de Laís, que deseja ser mãe de sua filha como qualquer outra mãe. “Eu não deveria ter que viver em eterno confronto com a escola por um direito instituído, porém não efetivado”, observa.

Camila faz parte de um grupo de crianças cujos pais, mães e responsáveis enfrentam diversas barreiras no acesso à formação educacional. Para os que estão em fase de aprendizado, a escola está ali, a vaga existe e geralmente as portas são fechadas logo que a palavra “deficiência” é falada. O mesmo acontece quando enfrentam o mercado de trabalho. A palavra “não” é frequente na vida dos quase 17,3 milhões de brasileiros e brasileiras que, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, têm algum tipo de deficiência. O número corresponde a 8,4% da população acima de dois anos; ainda segundo o levantamento, quase 25% — ou o equivalente a 8,5 milhões de pessoas com deficiência — têm acima de 60 anos. Apesar de serem uma parcela significativa da população, os avanços são lentos, as escolas ainda não promovem a inclusão das crianças com deficiência e o governo tenta aprovar a Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE), retomando o modelo superado de escolas e classes especializadas destinadas a crianças e adolescentes com deficiência.

Escola excludente 

A criação de ambientes para “educação especial” ou para alunos com “necessidades especiais” por si só sinaliza o preconceito e conta com o apoio do ministro da Educação, Milton Ribeiro. Em uma entrevista na TV Brasil (9/8/2021), ele defendeu a separação de estudantes com e sem deficiência. “Nós temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência”, disse, citando dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2020, mas sem fazer referência à completa inaptidão da escola para esse grupo de alunos e alunas. No mês em que é comemorado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (21/9), Ribeiro acrescentou que essas crianças “atrapalham” o aprendizado de outras sem a mesma condição. Diante da reação, o ministro pediu desculpas pelo “erro”. Depois, em uma reunião reservada na Câmara dos Deputados, no início de setembro, aproveitou para dizer que tem “pouco conhecimento” sobre as causas das pessoas com deficiência (PcD).

Nesse encontro com os parlamentares, Ribeiro assumiu o compromisso de rever o texto de alguns artigos do Decreto 10.502, que instituiu a PNEE em 30 de setembro de 2020, além de reforçar o orçamento da “educação especial”. O decreto foi então suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) por conter medidas discriminatórias e que vão contra a educação inclusiva de crianças com deficiência. O texto não só flexibiliza a oferta da educação como pode ser um caminho para que gestores rejeitem oficialmente matrículas de crianças com deficiência em escolas regulares, criando ambientes específicos para elas (Radis 220). No final de setembro (29/9), em outra reunião entre representantes do MEC e Ministério Público Federal (MPF), os procuradores reforçaram que, antes de propor uma nova política, é preciso reestruturar o sistema regular, para que ele consiga comportar os alunos com deficiência de forma inclusiva. A reunião terminou sem acordo e abriu caminho para uma resolução extrajudicial para o conflito caso o MEC não altere a norma, segundo o site do MPF.

A PNEE pretende implantar programas e ações dirigidos a crianças e adolescentes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação em escolas especializadas, o que seria um retrocesso para movimentos sociais e ativistas, entre eles, Laís, a mãe de Camila — e também de Alice, de quatro anos. “As pessoas confundem o que é receber alunos e alunas com deficiência na escola e de fato ser uma escola inclusiva. Porque não basta a criança com deficiência ocupar aquele lugar. Há muita coisa a ser feita para reparar essa injustiça histórica”, diz. Para Laís, a maior parte das escolas utiliza o conhecimento acumulado e faz uma adaptação à realidade da criança com deficiência em vez de rediscutir o modelo de educação que não contempla toda a diversidade humana na sua origem. “Em um país tão desigual, com a maior parte da população acessando uma educação precária, muitas vezes há confusão entre o que é um direito não efetivado com um não direito. Muitas famílias veem as duas coisas como iguais, e não são”, observa.

Carioca, Laís é professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Comitê pela Inclusão e Acessibilidade das Pessoas com Deficiência da Fundação, ativista de direitos humanos e cofundadora do AcolheDown. Por tudo isso, a pesquisadora vê o momento com apreensão, pois percebeu no cotidiano que o decreto rapidamente teve o poder de mudar posições, como ocorreu na escola onde Camila faz o 1º ano do Ensino Fundamental. “Mesmo que o decreto não passe no Congresso, a escola já mudou o tom da conversa com as famílias, porque essa é a saída para muitas instituições que não querem lidar com alunos com deficiência”, pontua. Para ela, há muitos interesses econômicos dirigidos a fortalecer as “escolas especiais”, que na prática vão segregar os alunos. “Dá para ver quais instituições votaram a favor da política e quais foram contra o decreto por considerar que ele não é democrático e é ilegítimo. Não podemos fazer parte disso”, sentencia.

Preconceito e discriminação 

A criação de “escolas especiais” é uma forma de capacitismo, como são chamadas as ideias, atitudes e expressões linguísticas preconceituosas que segregam, inferiorizam, ridicularizam ou excluem pessoas com deficiência. O capacitismo oprime tal como o racismo opera com pessoas negras, o machismo com mulheres e a homofobia com a população LGBTQIA+, diz o manifesto do Coletivo Feminista Helen Keller, uma organização de mulheres feministas com deficiência.

Em 2020, o coletivo lançou um guia de exercício de direitos que cita exemplos de comportamentos capacitistas: não se dirigir à pessoa com deficiência, mas com quem a acompanha; desconsiderar as potencialidades das pessoas com deficiência, como possibilidade de trabalhar, de locomover-se ou de tomar decisões; agir como se a realização de tarefas e interações cotidianas fossem grandes atos de superação ou de heroísmo; ter pena de uma pessoa por causa de sua deficiência, ao invés de ter empatia pelas suas vivências e pela sua própria percepção de dificuldades; ou tratar uma pessoa adulta com deficiência de maneira infantilizada.

A Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência ou LBI (lei 13.146/15) considera o capacitismo um crime de ódio e prevê pena de um a três anos de reclusão e multa para a pessoa infratora. A reclusão pode ter o seu período aumentado dependendo das condições em que o crime foi praticado. Conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a LBI foi a primeira lei federal baseada inteiramente na Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinada pelo Brasil, em Nova York, nos Estados Unidos, em 30 de março de 2007. Uma de suas principais inovações foi mudar o conceito jurídico de “deficiência” que passou a incorporar fatores sociais e ambientais, entre outros.

A superação do olhar biomédico sobre as pessoas com deficiência, pautado por uma funcionalidade de corpos que elas não possuem, e o investimento em um modelo biopsicossocial, que considera a pessoa em sua integralidade, fez com que a deficiência deixasse de ser identificada pela presença de lesão, doença ou alterações genéticas, para ser compreendida como o resultado de condições individuais em interação com uma ou mais barreiras, que são socialmente construídas e impostas, e que podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. “Idealmente, se levarmos em consideração o modelo social, esses recursos deveriam estar na escola regular, que deveria estar aberta e acessível para todos. É a escola que tem que se adaptar; que precisa ter livros, aulas e prédios acessíveis para todos”, disse Éverton Luís Pereira, professor da Universidade de Brasília (UnB), em uma entrevista à Radis em que reflete sobre “a inclusão além do corpo”.

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Confira a íntegra da edição de janeiro de 2022 da revista Radis.