Utilizando células humanas infectadas com o vírus da dengue, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) desenvolveram um modelo in vitro para avaliação de potenciais produtos farmacêuticos capazes de evitar a exacerbação da doença. O estudo foi publicado na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a dengue atinge aproximadamente 50 milhões de pessoas em mais de cem países, causando 500 mil internações anuais a maior parte entre crianças. Apesar da gravidade, os mecanismos de ação da doença ainda não são inteiramente conhecidos.
Segundo a autora principal do estudo, Claire Fernandes Kubelka, do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), o objetivo foi compreender os mecanismos de patogenicidade da dengue e aplicar esse conhecimento a longo prazo, utilizando o modelo para a triagem de drogas. O trabalho foi realizado em parceria com o Departamento de Farmacologia Aplicada do Instituto de Tecnologia em Fármacos de Manguinhos (Farmanguinhos), da Fiocruz.
Estamos em fase de encontrar parâmetros imunológicos que possam ser bons alvos para drogas. A idéia é aliar nossos estudos sobre a imunopatologia da dengue ao conhecimento de outras entidades especializadas no desenvolvimento de fármacos, disse Claire à Agência FAPESP.
De acordo com Claire, o modelo se baseou na modulação de citocinas moléculas envolvidas na emissão de sinais entre as células durante o desencadeamento das respostas imunes que têm papel importante no desencadeamento de manifestações hemorrágicas da dengue e outros sintomas de exacerbação da doença.
A partir de amostras de sangue de doadores, os pesquisadores isolaram monócitos um dos tipos de glóbulos brancos e os infectaram com o vírus 2 da dengue. O fármaco utilizado para inibir as citocinas foi a dexametasona, corticoesteróide amplamente utilizado para suprimir processos inflamatórios de várias naturezas.
Verificamos que, na cultura de monócitos infectados, a dexametasona provocou uma dimuição da taxa de infecção. Isso não nos anima a utilizar esse imunossupressor como possível medicamento, porque ele tem alta toxicidade e o modelo ainda requer otimização. Mas o uso da dexametasona se apresentou como um controle positivo interessante e os resultados nos incentivaram a pesquisar outros produtos, como fitoterápicos, explicou a pesquisadora.
Segundo Claire, o imunossupressor funcionou como um antiviral, ao inibir a citocina e, conseqüentemente, diminuir a presença do vírus. Mas, mesmo como antiviral, ela aponta que é preciso ter cautela no uso da dexametasona, já que pode haver presença do vírus também no meio extracelular. Além disso, o alastramento do vírus não é a principal preocupação nas pesquisas.
Na dengue, o mais importante não é o alastramento, mas o excesso da reação inflamatória. Acreditamos que é mais interessante buscar medicamentos capazes de barrar a reação do que fazer o controle da replicação viral, afirmou.
A pesquisadora do IOC destaca que os detalhes de mecanismos de ação da dengue ainda precisam ser desvendados. Segundo ela, um ponto crucial da doença é a indução de distúrbios no sistema de coagulação e o aumento da permeabilidade vascular. Essas alterações levam à diminuição da quantidade de plaquetas no sangue e ao extravasamento de fluidos para vários órgãos (edemas). As conseqüências podem ser a queda da pressão, o choque (desmaios) e as hemorragias.
Estamos tentando saber por que determinados fatores excretados são importantes para induzir essa permeabilidade. Se descobrirmos esses detalhes dos mecanismos de ação, teremos mais peças desse quebra-cabeça. É possível que, seguindo nessa linha de estudos, possamos descobrir algum mecanismo que seja um alvo potencial para as drogas que possam impedir o desenvolvimento da resposta exacerbada mais precocemente, disse.
Alvos negligenciados
Em outro trabalho, publicado pela editora Elsevier, o grupo testou o mesmo modelo utilizando, no lugar da dexametasona, um fitoterápico já patenteado, a Uncaria tomentosa, conhecida como unha-de-gato. O estudo teve participação de pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Trata-se de um antiinflamatório comercial do qual ainda não temos uma fração quimicamente pura, apenas uma fração alcalóide. O efeito é parecido com o da dexametasona. É uma entre as várias opções que estamos testando. O interesse é mostrar se alcalóides também são capazes de modular a infecção, explicou.
Claire afirma, no entanto, que ainda não se tem certeza de que esses são os alvos ideais. A doença precisa ser mais bem entendida. Por isso temos um projeto de doenças negligenciadas com 12 equipes, incluindo pesquisadores da Fiocruz e da UFRJ. Um dos focos é descobrir os parâmetros de gravidade da doença sob as perspectivas da fisiopatologia, imunopatologia e genética, a fim de descobrir porque algumas pessoas desenvolvem uma forma branda da doença e outras têm manifestações hemorrágicas ou entram em choque, disse.
Para ler o artigo An in vitro model for dengue virus infection that exhibits human monocyte infection, multiple cytokine production and dexamethasone immunomodulation, de Claire Kubelka e outros, disponível na biblioteca on-line SciELO (Bireme/FAPESP),