Chefe de vacinas da Pfizer: ‘Quando chegar sua vez, tome a que estiver disponível’

Quando uma empresa desenvolve um produto que ganha a preferência do público, isso geralmente é encarado como sinal de sucesso. Porém, ao falarmos de vacinas, essa “escolha” seletiva do consumidor pode trazer mais prejuízos do que benefícios.

E isso é ainda mais perigoso quando estamos no meio de uma pandemia: muitos brasileiros estão deixando de ir ao posto de saúde quando as doses disponíveis naquele local são de determinado fabricante ou de outro.

Segundo relatos publicados nas redes sociais, a vacina Comirnaty, desenvolvida por Pfizer/BioNTech, virou a “queridinha” de muita gente, que se recusa a tomar a CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) ou a AZD1222 (AstraZeneca/Universidade de Oxford), as outras opções disponíveis na campanha de imunização brasileira até o meio de junho.

O fenômeno dos “sommeliers de vacinas” está gerando reações nos próprios postos de imunização. Na Unidade Básica de Saúde do Cambuci, em São Paulo, por exemplo, um cartaz fixado na entrada apela: “Enquanto você escolhe a marca da vacina, o vírus pode escolher você. Vacine-se já!”

A mensagem foi flagrada pela repórter Beatriz Manfredini, da Jovem Pan News:

Vale reforçar que esse tipo de escolha num momento tão complicado como o que vivemos não faz sentido algum e pode até ser perigoso.

Quem diz isso é a própria líder médica de vacinas da Pfizer Brasil: a pediatra infectologista Júlia Spinardi entende que não é hora de pensar somente em si e nas próprias preferências, mas, sim, na proteção de toda a comunidade.

“Precisamos entender que as vacinas disponíveis se mostraram seguras e eficazes e o uso de todas elas, em conjunto, é o que vai nos permitir controlar a covid-19”, diz.

“Quando chegar a sua vez, vacine-se com o imunizante que estiver disponível”, resume a especialista.

Spinardi, que trabalha há cinco anos na farmacêutica e tem mestrado em Ciências da Saúde pela Santa Casa de São Paulo, concedeu uma entrevista exclusiva para a BBC News Brasil, na qual avaliou o desenvolvimento das vacinas, o andamento das campanhas de imunização e as perspectivas futuras de enfrentamento da pandemia.

Uma façanha global

Em meio a tantas perdas e sofrimentos, a humanidade conseguiu um feito notável: desenvolver, testar e aprovar várias vacinas contra uma doença nova num intervalo de menos de 12 meses.

Repare nas datas: a observação de que um novo vírus estava provocando uma “doença misteriosa” na China começou a ser feita entre o final de dezembro de 2019 e as primeiras semanas de janeiro de 2020.

E os primeiros imunizantes para a covid-19, como a própria Comirnaty e a AZD1222, já estavam aprovados para uso em larga escala em dezembro de 2020.

Para Spinardi, a façanha só foi possível graças ao investimento em biotecnologia e ao foco total dos laboratórios públicos e privados em completar essa corrida contra o relógio.

“Aqui na Pfizer, tivemos um redirecionamento total de nossas equipes e investimentos para que isso acontecesse e nós criássemos vacinas no menor tempo possível”, diz.

Pediatra infectologista Julia Spinardi, líder médica de vacinas da Pfizer Brasil, entende que não é hora de escolher o imunizante de um fabricante ou de outro

A pediatra destaca que a inovação se deu também na forma como os estudos clínicos foram conduzidos: “Etapas que antes eram feitas em sequência e demoravam meses para serem concluídas foram realizadas em paralelo, para ganhar rapidez. E isso aconteceu, claro, sem que os critérios de segurança fossem deixados de lado.”

Ainda na seara das novidades, a atual pandemia marcou a chegada de uma nova geração de vacinas (ao menos quando pensamos no uso em larga escala): os imunizantes de mRNA, como os produtos desenvolvidos por Pfizer/BioNTech e Moderna.

Eles são baseados num pedaço de código genético sintetizado em laboratório que, ao ser injetado no corpo, instrui nossas células a produzirem proteínas características do coronavírus.

Essas moléculas, por sua vez, são reconhecidas pelo sistema imune, que cria anticorpos capazes de combater uma infecção de verdade, caso o coronavírus tente invadir nosso organismo.

Essa nova plataforma tem vários pontos positivos, como a fabricação rápida e uma flexibilidade maior na adaptação da fórmula para fazer frente às novas variantes, por exemplo.

“Nós não precisamos fazer o cultivo de vírus ou bactérias em laboratório, que é algo mais complicado e que exige uma série de medidas. O fato de ser uma vacina 100% sintetizada facilita muito a produção como um todo”, avalia Spinardi.

Entre as desvantagens, vale citar a pouca experiência na plataforma de mRNA em larga escala e as dificuldades tecnológicas em montar fábricas capazes de fabricar esse produto: hoje em dia, o mundo depende da expertise de poucas farmacêuticas (como Pfizer e Moderna) para obter milhões e milhões de doses dessas vacinas.

Outro ponto que gerou muita preocupação nos primeiros meses após a aprovação da Comirnaty foi a necessidade de armazenamento em temperaturas muito frias (abaixo de -75 °C), o que demandava equipamentos rebuscados e pouco acessíveis.

Essa seria uma dificuldade enorme num país tão grande e diverso como o Brasil: lugares com menos acesso a congeladores superpotentes poderiam ficar sem esse imunizante.

Mas essa barreira caiu por terra mais recentemente: já existem caixas especiais que facilitam o transporte dos lotes e novos estudos mostraram que essa vacina permanece viável se mantida a -20 °C por algumas semanas.

Necessidade de manter a Comirnaty em temperaturas baixíssimas seria um enorme entrave no uso do imunizante em países como Brasil. Mas algumas soluções aliviaram o tamanho do problema

Outra boa notícia foi a descoberta de que as doses que serão utilizadas logo, nos próximos dias, podem ficar na temperatura de 2 a 8 °C, que já se enquadra dentro da realidade dos mais de 30 mil postos de vacinação espalhados pelo Brasil.

“Isso foi fundamental para que a gente conseguisse fazer a vacina chegar às diferentes regiões do nosso país”, comemora Spinardi.

Desafios em tempo real

A pediatra também chama a atenção para a diferença entre eficácia e efetividade de um novo imunizante.

Enquanto a eficácia é medida a partir dos estudos clínicos de fase 3, que conta com algumas dezenas de milhares de voluntários, a efetividade mede os impactos de vida real da campanha de vacinação, que envolve milhões de pessoas.

A Comirnaty, que já havia demonstrado uma eficácia de 91% nas pesquisas, até superou os resultados quando aplicada em larga escala em países como Israel e Estados Unidos.

“Os dados de efetividade que vemos hoje das nações com a imunização mais adiantada confirmam essa taxa superior a 90% e corroboram a necessidade do esquema de duas doses para garantir o maior potencial de proteção”, informa.

A despeito das negociações com o Governo Federal do Brasil e todos os e-mails e propostas não respondidos, que estão sendo apurados pela CPI da Covid, Spinardi classifica como “gratificante” poder acompanhar todas as etapas de estudos e ver a vacina finalmente chegar ao Brasil.

“O desembarque das primeiras doses no país foi um momento de muita esperança. A gente passou efetivamente a entender que podíamos fazer parte da solução para o problema que estamos vivendo”, admite.

Mas é claro que essa esperança fica muito próxima de outros sentimentos, como o estado de alerta constante com os boatos e as notícias falsas.

E essas teorias da conspiração vêm de todos os lados: o exemplo mais notório foi o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que, em dezembro de 2020, se envolveu numa polêmica ao comentar sobre as negociações com a Pfizer:

“Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: nós (a Pfizer) não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema seu”, discursou.

Embora essa relação entre a vacina e “virar jacaré” possa parecer piada e até tenha gerado muitos memes, a verdade é que não se sabe o quanto uma fala dessas pode abalar a confiança da população, que precisa estar engajada e convencida da importância de ir até o posto de saúde para se proteger.

Sem citar nenhum exemplo específico, Spinardi atesta que a melhor maneira de lidar com as notícias falsas é apostar na informação.

“As pessoas têm o direito de fazer perguntas e precisam encontrar respostas. Há muito medo, por exemplo, com os efeitos colaterais. Então é necessário que todos saibam o que podem sentir após tomar a vacina”, aposta.

De forma geral, os imunizantes já testados e aprovados contra a covid-19 podem provocar dor no local da aplicação, que se resolve após alguns dias. O aparecimento de febre baixa, calafrios, dor de cabeça e outras manifestações leves e moderadas também é frequente, mas isso não é nada fora do esperado.

Caso apareçam outros sintomas, ou esses incômodos mais comuns persistam após três ou quatro dias, vale conversar com o médico ou voltar ao posto de saúde para relatar o caso e receber orientações mais personalizadas.

Como já mencionado no início da reportagem, a diretora da Pfizer atesta que a imunização é uma estratégia coletiva e não estamos na posição de escolher a vacina A, B ou C — seja por medo de eventos adversos ou pela busca de uma eficácia maior.

“Precisamos entender que as vacinas disponíveis se mostraram seguras e eficazes e o uso de todas elas, em conjunto, é o que vai nos permitir controlar a covid-19”, diz.

“Quando chegar a sua vez, vacine-se com o imunizante que estiver disponível. E incentive as demais pessoas da sua família, da sua rua e da sua comunidade a fazerem o mesmo”, completa.

Imunização deve ser encarada como estratégia coletiva e a pandemia só estará controlada quando uma quantidade considerável da população for vacinada

Ainda no universo dos fenômenos recentes, não dá pra ignorar como as vacinas contra o coronavírus viraram assunto popular e hoje aparecem em abundância nos memes.

O mais famoso deles foi produzido pelo humorista e roteirista Esse Menino: num vídeo que já conta com mais de 18 milhões de visualizações e 93 mil comentários no Instagram, ele aborda a falta de respostas do Governo Federal aos e-mails da Pfizer.

Termos como “beijinhos científicos” e “Pifáizer” caíram no gosto popular e geraram milhões de figurinhas de WhatsApp, fotos e outros vídeos.

No geral, a diretora da Pfizer vê essa repercussão toda com bons olhos.

“Eu acredito muito no poder da comunicação, de passar uma informação correta e cativar as pessoas, de modo que elas façam a coisa certa para seu próprio bem”, diz.

“Mas é importante entender que os memes podem até chamar a atenção para o assunto, mas eles não devem ser a única fonte de informação: as pessoas precisam buscar materiais mais completos e contextualizados”, pondera.

O que o futuro nos reserva

Passados os seis primeiros meses de vacinação contra a covid-19 em várias partes do mundo, a discussão sobre o fim da pandemia começa a tomar forma — ainda que esteja bastante longe de nossa realidade.

Mas, para que isso venha a acontecer de fato no futuro, alguns pontos-chave precisam ser resolvidos com urgência.

O primeiro deles é a desigualdade na distribuição das doses: os imunizantes de Pfizer, AstraZeneca, Janssen e outras farmacêuticas chegaram muito mais rápido e em maior quantidade aos países mais ricos, enquanto alguns dos lugares menos desenvolvidos do planeta sequer iniciaram suas campanhas.

Até abril, os países ricos já haviam vacinado uma a cada quatro pessoas. Nas nações mais pobres, apenas um a cada 500 indivíduos havia recebido as doses contra a covid-19.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a classificar essa situação de “chocante” e “grotesca”.

Spinardi considera que a empresa onde trabalha está tentando ajudar a resolver essa questão. “A Pfizer tem feito um esforço muito grande para negociar com os governos de todos os países, sejam eles ricos ou pobres”, defende.

“E também temos parcerias com a Covax Facility, para ampliar o acesso às doses”, acrescenta.

Covax Facility é uma iniciativa que distribui vacinas contra a covid-19 para os países mais pobres e com menor poder de barganha para adquirir as doses por conta própria

Uma alternativa para facilitar a chegada das vacinas e descomplicar as campanhas é a intercambialidade dos produtos de diferentes laboratórios.

Em outras palavras, alguns especialistas propõem misturar as vacinas: a pessoa poderia tomar eventualmente a primeira dose da vacina da Pfizer e a segunda da AstraZeneca, por exemplo.

Isso, inclusive, está sendo avaliado por estudos científicos em alguns países, como o Reino Unido.

Por ora, as farmacêuticas parecem não levar em conta essa possibilidade.

“Neste momento, não temos nenhum programa oficial para analisar a intercambialidade e nossa recomendação é seguir com o esquema que temos hoje, de usar a mesma vacina nas duas doses”, esclarece a pediatra.

“É claro que isso pode acontecer no futuro, mas os dados que temos por enquanto ainda são muito limitados”, avalia.

Um terceiro e último front que começou a ser atacado nas últimas semanas é a ampliação dos públicos que poderão receber as vacinas — a Comirnaty, por exemplo, recebeu aprovação para ser usada em indivíduos de 12 a 18 anos no Brasil recentemente.

“A gente entende que a prioridade agora são os adultos, especialmente aqueles com risco de desenvolver as formas severas da doença. Mas, com o passar do tempo, só iremos conseguir controlar a circulação do vírus quando incluirmos todos os grupos etários”, explica.

“Os mais jovens representam 25% da população mundial e em algum momento precisaremos pensar neles também”, finaliza.