Quais as diferenças e semelhanças na gestão dos crimes na França e no Brasil?

Apesar de realidades muito distintas, Brasil e França adotam o mesmo sistema jurídico: o direito positivo ou civil law. Embora essa estrutura jurídica tenha como principal característica o cumprimento de códigos, regras e leis escritas, as especificidades próprias a seu funcionamento em cada um dos países os distinguem em alguns pontos. “No Brasil, por exemplo, o trabalho do Ministério Público (MP) é autônomo em relação ao Poder Judiciário e mesmo às polícias civil e militar. Alguns especialistas chegam até a classificar o MP como um quarto poder, além do Executivo, Legislativo e Judiciário”, explica Vívian Gilbert Ferreira Paes, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Na França, o MP é parte do Poder Judiciário e do Executivo. Assim, a polícia investiga em conjunto com os promotores de justiça, que acompanham, ratificam e eventualmente corrigem os rumos do processo”, complementa.

Essas afirmações são alguns dos resultados da pesquisa de doutorado-sanduíche de Vívian, que resultou no livro Crimes, procedimentos e números: estudo sociológico sobre a gestão de crimes na França e no Brasil, publicado com recursos do programa Auxílio à Editoração (APQ 3), da FAPERJ. Durante a pesquisa, ela realizou uma análise comparativa da questão penal francesa e brasileira entre os anos de 2000 e 2008. “Verifiquei os contrastes e semelhanças na construção e administração dos processos penais, segundo suas instituições, dando destaque à forma e ao processamento de dados entre elas, além de analisar os números de crimes solucionados nos dois países”, explica.

Entre as diferenças, a socióloga fala sobre a polícia que atende a criminalidade comum nos dois países. “Na França, cada força de segurança, a Polícia Nacional e a Gendarmeria Francesa, são responsáveis por vigiar, investigar e, em caso de necessidade, partir para a repressão. As duas polícias são de ciclo completo, mas a atuação geográfica é distinta. No Brasil, a Polícia Civil responde pela investigação e a Militar é a que atua na vigilância e no confronto, como órgão de repressão”, explica Vívian. “Além da parceria da polícia francesa com o MP, toda a ação é centralizada e vinculada ao governo nacional. Já no Brasil, além da independência entre os dois poderes, as ações policiais são subordinadas e sujeitas às ingerências políticas de cada estado, mas obedecem a princípios constitucionais válidos para toda a federação”, acrescenta.

Apesar da integração entre a força de segurança e o MP francês possibilitar a investigação em tempo real dos fatos, Vívian pondera sobre seu real benefício. “Sempre há duas formas de se olhar uma questão. Não podemos esquecer de que há uma dependência muito grande da polícia em relação aos interesses dos promotores públicos, subordinados ao governo nacional, o que pode levar muitas vezes a que sejam realizadas prioritariamente as investigações que o Estado julga pertinentes”, destaca. No caso brasileiro, há o sistema de duplo inquérito, em que a investigação começa pela polícia e depois prossegue pelo MP, que pode continuar ou até mesmo desqualificá-lo por achar que as provas são insuficientes ou por não ter interesse na investigação. “Ainda assim, precisamos destacar que o MP no Brasil reivindica o poder de investigar crimes cometidos por poderosos empresários e políticos, além dos cometidos pelos próprios policiais”, afirma.

 

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Livro é resultado de pesquisa de      doutorado-sanduíche na França

A socióloga destaca como ponto em comum a característica elitista das polícias dos dois países. Na França, o medo do terrorismo gera preconceitos contra imigrantes de regiões mais pobres e de determinados grupos étnicos, em transportes e espaços públicos, como aeroportos e metrô. Mas este problema é invisibilizado porque a legislação francesa proíbe pesquisas perguntando a cor ou a raça dos cidadãos, mesmo com casino online a discriminação que existe no país. Ainda assim, o exército patrulha os transportes e os locais públicos com armas de guerra vigiando bolsas que possam conter bombas ou armas perdidas, preferencialmente que estejam com pessoas desse grupos étnicos“, explica. “No caso do Brasil, a discriminação da polícia se dá também pela questão racial e pelo preconceito de classe social. As maiores vítimas de crimes violentos e o público alvo da ação truculenta da polícia no Rio de Janeiro, por exemplo, estão na zona norte e oeste da cidade e não na zona sul”, compara. Naquelas, os policiais entram e invadem casas de moradores de favelas, mas, se o suspeito for um morador de regiões da elite carioca, só o fazem com mandato de busca e apreensão.”

 

Vívian destaca que, no Brasil, a independência do MP em relação aos outros poderes da República e a superposição de atividades entre esta instituição e a Polícia Civil têm levado, inclusive, ao descontentamento de políticos, motivando a polêmica criação da proposta de emenda constitucional 37 (PEC 37). A lei propõe dar maior amplitude de investigação às polícias e estabelecer limites à atuação do MP quanto à investigação e ao controle externo da ação policial.

Nos dois países, reformas judiciais foram iniciadas nos anos 1990

Tanto na França quanto no Brasil, reformas judiciais dos anos 1990 introduziram elementos de oralidade nos processos de administração da justiça através da possibilidade de mediação e negociação dos conflitos. “Existiam os depoimentos, você está certo, mas os depoimentos deviam ser sempre transcritos. Hoje em dia se faz investigação mais simplificada e as pessoas devem ser citadas de uma forma mais simples no registro, mas as suas falas seriam coletadas no juizado criminal”, explica Vívian. Segundo ela, a prática tem como objetivo tornar a investigação e os processos judiciais mais céleres e menos custosos. Ela ainda salienta o uso de aparatos tecnológicos para dar maior eficiência e transparência nos processos. “Na França, todo depoimento de autores de crimes ou de jovens tem que ser filmado e arquivado em um CD, junto ao processo. E no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, há o sistema informatizado de acompanhamento de processos, disponível em uma intranet para consulta dos órgãos policiais e judiciais”, afirma. Mas somente a introdução do aparato tecnológico não resolve o problema de uma melhor administração da justiça, pois quem pauta o conteúdo e o ritmo das atividades são os profissionais que atuam nestas instituições.

Vívian destaca ainda que a França optou pela ênfase a crimes de mais fácil elucidação, como a repressão a imigrantes ilegais e identificação a usuários e traficantes de drogas, mas eles tem índices de esclarecimentos de outros crimes bem maiores que o Brasil. No Brasil, mesmo com a Lei de Acesso às Informações, a socióloga chama atenção para o fato de ainda existir muita dificuldade em coletar dados detalhados sobre criminalidade e funcionamento da justiça. “Na França, as informações são públicas e disponibilizadas periodicamente pela internet”, afirma. Assim, ela resolveu optar por apresentar os números franceses, mas, no caso brasileiro, dada a dificuldade de obtenção de dados e ausência de um banco de dados nacional, restringiu-se a apresentar os dados de um estado da federação responsável por 30% dos registros nacionais (o Rio de Janeiro) e apresentou o fluxo do sistema de justiça para o crime de homicídio. “Na França, 70% deles são solucionados e a motivação principal é de crimes passionais. No Brasil, a taxa de solução é bem menor, vários estudos de fluxo indicam que entre 7 a 15% são julgados. No Rio de Janeiro, os casos resultam geralmente de confrontos armados entre pessoas que não se conheciam, policiais e traficantes, ou mesmo disputas entre pontos de venda de drogas”, complementa.

Ainda em relação aos números, Vívian salienta as suas diferentes motivações e dimensões dos conflitos e compara a quantidade de homicídios nos dois países. “Em 2008, os registros oficiais apontam para 839 assassinatos na França. No Brasil, somente na cidade do Rio de Janeiro, esse número chegou a 2069 homicídios”, destaca. A socióloga também chama a atenção para o fato de as instituições brasileiras ainda classificarem os eventos com morte a partir de outras categorias, como os latrocínios e os autos de resistência, o que pode levar a números de eventos com morte ainda mais elevados.

A pesquisadora explica ainda que, no caso brasileiro, a solução dos crimes não é tomada como parâmetro para avaliar a eficácia do trabalho policial. “A política de metas estabelecidas junto às forças policiais em vários estados brasileiros se concentra mais na diminuição do número de registros propriamente dito e não no esclarecimento dos crimes. O objetivo é melhorar estatísticas de prevenção de determinados crimes, sem se preocupar na forma como esses dados são alcançados e se a investigação está sendo bem realizada”, afirma. Com todos os comparativos reunidos, ela espera que seu livro possa contribuir para uma melhor orientação das políticas públicas de segurança no Brasil

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