Caso os resultados sejam repetidos em ensaios clínicos, a ideia é utilizar essa via molecular como terapia auxiliar para a doença
As células mieloides supressoras (MDSCs) são aquelas produzidas na medula óssea, mas ainda em fase de maturação. Em pessoas saudáveis, elas passam por todo o processo de diferenciação celular ainda na medula óssea e apenas quando maduras migram para a corrente sanguínea. Em pesquisa do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, testes realizados em animais mostraram que essas células desempenham um papel importante no agravamento da tuberculose causada por Mycobacterium tuberculosis (Mtb).
O resultado é parte da tese de doutorado do pesquisador Caio César Barbosa Bomfim e foi a ganhadora de menção honrosa no Prêmio Capes de Tese em 2021. Sob orientação da professora Maria Regina D’Império Lima, coordenadora do Laboratório de Imunologia das Doenças Infecciosas do ICB, Bomfim administrou, em camundongos, um anticorpo específico para combater as células mieloides na fase tardia da doença. A eliminação dessas células reduziu a gravidade da doença, diminuindo a quantidade de micobactérias e a inflamação no pulmão, aumentando a sobrevida desses animais.
Se isso for comprovado nos ensaios clínicos, o combate a essas células pode se tornar uma nova estratégia terapêutica para reduzir a gravidade da doença.
Na tuberculose grave, as células imaturas migram para o pulmão e não possuem os mecanismos necessários para eliminar a bactéria, além de apresentarem um efeito imunossupressor. “Demonstramos também que elas servem como um ‘nicho’ para a proliferação de bactérias”, explica Bomfim ao Jornal da USP.
Bomfim também foi o responsável por elucidar por quais vias moleculares a Mtb estimula a expressão do Irg1 (do inglês, Immune-Responsive Gene 1), uma importante enzima da mitocôndria que produz o itaconato – composto responsável por regular a inflamação.
Vias moleculares
Diante desse cenário, Bomfim se perguntou, então, que mecanismos poderiam estar envolvidos no recrutamento dessas células para o pulmão. Para tentar solucionar essa questão, o pesquisador foi até o National Institute of Health (NIH), nos Estados Unidos.
Bomfim testou vários mecanismos para tentar compreender quais vias estariam envolvidas na produção do Irg1 e do itaconato. Utilizando macrófagos (as principais células infectadas pela bactéria), ensaios in vitro foram realizados para investigar como se dá a produção dessa enzima na tuberculose grave e na moderada.
“Um estudo publicado um pouco antes mostrou que uma molécula chamada itaconato conseguia regular o recrutamento de células para diferentes órgãos e, no caso da tuberculose, ela também agia dessa forma”, relata o pesquisador. “No caso da infecção por Mtb, foi observado um aumento na expressão do Irg1 em macrófagos e, consequentemente, na produção do itaconato”, explica.
Retornando ao Brasil, testes in vivo revelaram que na tuberculose moderada havia níveis mais elevados na expressão do Irg1 e menos células infiltradas no pulmão desses animais. Já na tuberculose grave, ocorreu o oposto: houve uma redução na produção de Irg1, resultando em uma menor produção de itaconato, favorecendo o influxo maciço de células mieloides para o pulmão e agravando o quadro da doença.
Foi descrita, também, qual seria a via de indução do itaconato.
Quando há a invasão da bactéria no pulmão, o macrófago precisa fagocitá-la, ou seja, engolir literalmente o invasor, que passa a ficar no interior da célula dentro de uma estrutura chamada vacúolo para induzir à expressão do Irg1. O que acontece é que essa célula de defesa, após englobar a bactéria, libera antígenos (como se fossem ‘pedacinhos’ do microrganismo) para fora desse vacúolo, mas ainda dentro da célula. Essa é uma via importante para induzir à expressão do Irg1, ou seja, justamente o vazamento desses antígenos. Essa via contribui, ainda, para a produção de um outro tipo de molécula, o interferon alfa (IFN-α) e para o aumento da expressão do Irg1.
Os pesquisadores fizeram, então, mais ensaios. Em um deles, trataram esses macrófagos com interferon gama (IFN-ϒ) e observaram que ele também aumentava a produção da proteína Irg1. Mas por que a escolha pelo IFN-ϒ?
Bomfim disse ao Jornal da USP que na tuberculose também ocorre a produção de IFN-ϒ. “Como essa citocina é outra via importante de produção de Irg1 e nos animais com quadro grave de tuberculose o IFN-ϒ estava em níveis muito baixos, isso implica redução da produção de Irg1 e, consequentemente, do itaconato.” E continua: “Esses níveis baixos de Irg1 e itaconato favorecem a infiltração maciça de células mieloides supressoras no pulmão, que suprimem a resposta imune, reduzindo ainda mais os níveis de IFN-ϒ. Isso vira um ciclo vicioso, amplificando o sinal, favorecendo a proliferação bacteriana e agravando cada vez mais a doença.”
Covid, influenza e tuberculose
Para a professora Regina, os resultados da tese sugerem que mecanismos celulares e moleculares semelhantes possam atuar em outras doenças. “Primeiro, estamos trabalhando com o pulmão, um órgão que é acometido por várias outras patologias, como gripe e covid-19, então, de certa maneira, mecanismos parecidos podem operar nessas doenças infecciosas”, diz. “Esse estudo contribuiu para o entendimento da tuberculose grave, pois desvendou os processos envolvidos na resposta imune contra a doença.”
Bomfim está, agora, realizando o pós-doutorado no Institut Cochin – Université Paris Cité, na França, e trabalhando com o vírus HIV. “Sabemos que uma das principais causas de morte entre os pacientes com HIV é exatamente a coinfecção por tuberculose”, explica. “Nesse período, quero aprender a trabalhar com esse vírus, desenvolver novas técnicas para, no futuro, ter a minha própria linha de pesquisa”, conclui.
Os pesquisadores publicaram três artigos sobre o trabalho. O primeiro no Journal of Infectious Disease; e outros dois no Frontiers and Infection Microbiology.
Doença antiga
A tuberculose é causada por uma bactéria chamada Mycobacterium tuberculosis – também conhecida como bacilo de Koch. É uma doença infecciosa, transmissível pelo ar, que compromete principalmente os pulmões.
Apesar de ser uma enfermidade antiga (evidências de decomposição tubercular encontradas em múmias do Egito indicam que a tuberculose tenha acometido a humanidade há, pelo menos, quatro mil anos), a patologia continua sendo um importante problema de saúde pública. No mundo, a cada ano, cerca de 10 milhões de pessoas adoecem e mais de um milhão morrem em decorrência dela.
Dados do Ministério da Saúde apontam que, no Brasil, são notificados aproximadamente 70 mil casos novos de tuberculose, e cerca de 4,5 mil mortes por ano.
Mais informações: e-mail caiocesarbonfim@usp.br, com Caio César Barbosa Bomfim