O sociólogo Tiago Rangel Côrtes analisou a história da indústria da costura em São Paulo e o fluxo migratório para o setor, envolvendo principalmente bolivianos e paraguaios, além de acompanhar denúncias de trabalho escravo, sobretudo de uma grife de roupas multinacional e os desdobramentos do caso. A pesquisa, realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, mostra que as soluções apresentadas para os casos denunciados extrapolam o direito do trabalho e têm entrado em soluções de mercado.
“A tendência é tomar medidas que sugerem aos migrantes se tornarem empreendedores, transformando as oficinas de costura em empresas. A questão é que, neste caso, o empreendedorismo muda o campo de problemática das relações de trabalho e livra as empresas das responsabilidades pelos trabalhadores”, explica o pesquisador.
Segundo Côrtes, “empresas são juridicamente iguais entre si, enquanto trabalhadores assalariados estabelecem relações de subordinação, hierárquicas, de direção e assujeitamento às ordens. Com o processo de subcontratações e a solução do empreendedorismo, muda-se o estatuto das relações de produção: não mais entre trabalhador e patrão, mas entre empresas, juridicamente iguais. Ou seja, a problemática mudou do direito que regula relações de trabalho para o direito que regula relações de mercado”.
O sociólogo entrevistou auditores e fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, membros do Judiciário e Ministério Público do Trabalho, migrantes transnacionais, donos de oficinas, empresas intermediadoras, membros da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, além de Organizações Não-governamentais (ONGs).
Denúncias
As denúncias envolvendo uma grife de roupas multinacional foram usadas para mostrar como a abordagem dada ao trabalho escravo evoluiu. Côrtes conta que na primeira fiscalização, em 2011, a empresa intermediária contratada para a produção de roupas se responsabilizou e arcou com todas as responsabilidades imputadas na fiscalização.
Já na segunda fiscalização, também em 2011, a empresa intermediária produzia quase exclusivamente para a multinacional e, com a denúncia, deixou de comprar dela. A intermediária perdeu os clientes, ficou com o nome sujo e fechou as portas. Foi proposto um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a multinacional e o Ministério Público. Houve duas rodadas de negociação antes de fecharem o TAC. “Na primeira, a multinacional não poderia subcontratar empregados. Mas a empresa não aceitou essa cláusula e a saída foi realizar outra rodada. O procurador mudou a proibição de subcontratar desde que a multinacional assumisse a responsabilidade jurídica pela cadeia produtiva.”
Inicialmente, o valor da indenização por danos morais era de R$ 20 milhões. Depois, o valor baixou para R$ 3,5 milhões que deveriam ser utilizados pela multinacional em investimentos sociais. O dinheiro foi enviado para o financiamento de ONGs, visando, dentre outras coisas, a elaboração de projetos ligados ao empreendedorismo, com foco nos migrantes, para eles se transformarem em empresários de si mesmos. “A multinacional contornou a situação de ré, no TAC, para alavancar a marca, como empresa socialmente responsável, pois estaria investindo altas cifras nos migrantes”, diz.
Mudança conceitual da formulação da crítica
“A complexidade deste caso reside no fato de que isso é feito, ao mesmo tempo, restituindo o vínculo de trabalho dos trabalhadores resgatados e empreendendo esforços, por meio do TAC, para tornar os outros migrantes empreendedores. O universo ideal, do ponto de vista das grandes empresas, é que todos os migrantes fossem empresas bem constituídas, autônomas, bem consolidadas. Essa é, ao mesmo tempo, a utopia dos migrantes. Tem-se a convergência de interesses”, explica.
“A questão que proponho repousa nesse ponto: de um lado, os migrantes nesses processos de subjetivação em torno da ideia da empresa e, de outro, as grandes empresas que controlam as cadeias perseguindo relações de igualdade entre empresas autônomas, livrando-se de custos e responsabilidades trabalhistas relacionadas à fase que mais demanda força de trabalho na cadeia produtiva, que é a da costura. A polêmica e ponto de reflexão que deixo em aberto é justamente: de onde formular a crítica? A referência do trabalho assalariado já não serve mais. Com esses processos o que se tem é uma celebração do empreendedorismo, com anuência dos operadores do direito, e entusiasmo por parte dos migrantes, das empresas demandantes de serviço e das ONGs envolvidas no TAC”, aponta.
Para o pesquisador, pensar criticamente o trabalho, pensar as relações sociais e jurídicas de produção, é pensar no conflito, nas diferenças de poder entre os atores envolvidos na atividade produtiva. “O empreendedorismo transforma a chave dessa reflexão. A pergunta que sai da minha pesquisa é essa: de onde agora devemos formular a crítica em relação ao trabalho, ao empreendedorismo? Este estudo é um esforço de mostrar essa mudança de paradigmas, de campos conceituais.”
A dissertação Os migrantes da costura em São Paulo: retalhos de trabalho, cidade e Estado foi apresentada na FFLCH no dia 2 de dezembro de 2013 sob a orientação da professora Vera da Silva Telles.