Um estudo coordenado por diferentes unidades da Fiocruz reconstruiu a dinâmica de transmissão do vírus da febre amarela que, nos últimos sete anos, causou surtos da doença em diversos estados do Brasil. Publicada na revista Science, a pesquisa rastreou o ressurgimento e a propagação do vírus, por meio da análise de dados epidemiológicos, associada a um estudo filogenético, em que se avaliou a evolução do vírus, examinando amostras provenientes de macacos e seres humanos infectados. Ao todo, foram gerados 147 genomas do vírus, possibilitando aos pesquisadores identificar um novo corredor de transmissão.
“Desde a reemergência da febre amarela, em 2016, vínhamos tentando entender como estava ocorrendo a transmissão. Em um estudo de 2018, já havíamos constatado que se tratava de transmissão silvestre e demonstrado os movimentos do vírus. Na época, contávamos com 50 genomas. Em 2019, em outro estudo, conseguimos mostrar a ocorrência de duas ondas de transmissão. Agora, ao aumentar o número de sequenciamentos, chegamos a 147 genomas, dando-nos a possibilidade de contar melhor essa história”, explica o pesquisador da Fiocruz Minas Luiz Alcântara, um dos coordenadores do estudo.
Uma das constatações da pesquisa é que há três linhagens do vírus em circulação, denominadas Ia, IIb e IIIc. Até então, sabia-se da existência apenas das duas primeiras. O estudo também revelou que esta terceira linhagem identificada, a IIIc, está associada a um corredor espacial de transmissão que liga o Norte do país, região considerada endêmica devido à constante circulação do vírus, a uma região que os pesquisadores chamam de Bacia Extra-Amazônica, que inclui os estados de Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais e Sul do país. Foi o primeiro estudo a identificar mais esse corredor de disseminação.
“As três linhagens apresentaram diferentes padrões de transmissão. A Ia se espalhou do Norte de Minas Gerais em direção ao Sudeste e, posteriormente, ao Nordeste. A linhagem IIb mostrou dispersão inicial do estado de Goiás para o Sudeste, atingindo Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo, com uma expansão para o Sul do país, onde persistiu até 2021. Essa distribuição espacial das duas linhagens, que já havia sido relatada em estudos anteriores, nos permitiu produzir a primeira evidência da formação desse corredor de disseminação, que liga o Norte à Bacia Extra-Amazônica. Além disso, ao reconstruir a história evolutiva do vírus, vimos que, embora os primeiros registros de surtos ocorreram em 2016, o vírus já estava em circulação desde 2013”, afirma Alcântara.
Para fazer as análises, os pesquisadores também se basearam em um índice que avalia o perfil do vetor responsável da transmissão da doença, chamado índice P, que é calculado a partir de dados climáticos. Tal índice foi calibrado para o vetor do ciclo urbano Aedes aegypti, devido à falta de informações para outros mosquitos vetores da doença. Os resultados das análises mostraram que o risco de disseminação apontado pelo índice coincide com as notificações de casos de infecção em humanos, sugerindo que as alterações climáticas e seus efeitos nas populações de Aedes aegypti podem ditar o momento dos eventos de propagação verificados.
“Os resultados mostraram uma sincronicidade entre o risco estimado e os picos epidêmicos. Ao agregarmos dados epidemiológicos e climáticos, pudemos entender como as mudanças no clima interferem nesse contexto. As análises revelaram, por exemplo, que o aumento da temperatura e da precipitação em algumas áreas pode estar contribuindo para a criação de condições para a manutenção de focos de transmissão do vírus”, explica a pesquisadora da Fiocruz Minas Marta Giovanetti, também coordenadora do estudo.
No artigo, os pesquisadores comentam que as alterações na legislação florestal em vigor desde 2016 permitiram e fomentaram a degradação dos ambientes de florestais, diminuindo o tamanho de florestas protegidas ao longo dos rios, situação que faz aumentar a exposição dos trabalhadores rurais adultos, que atuam na exploração madeireira e na agricultura. Essa observação vai ao encontro dos dados epidemiológicos, que mostram que a incidência da doença nos últimos surtos foi maior entre homens com idade entre 45 e 49 anos, grupo populacional envolvido nesse tipo de atividade.
Ainda conforme os pesquisadores, até 2017, verificou-se um desmatamento florestal recorde medido ao longo do vale do rio Doce, no estado de Minas Gerais. Além disso, estudos anteriores destacam que o ressurgimento do vírus da febre amarela em Minas coincide com um período de seca severa, o que pode ter contribuído para a disseminação dele nas fronteiras rurais-urbanas, criando pressões ambientais que provocaram seu ressurgimento perto das cidades do sudeste do país. Paralelamente, o número de incêndios florestais na região onde o vírus ressurgiu em 2020 mais do que duplicou em 2018 e 2019.
Outro importante resultado do estudo foi a identificação de focos de transmissão em localidades com grande número de notificações de casos de febre amarela em seres humanos e baixa cobertura vacinal. Por outro lado, no Sul do país, onde há elevada cobertura vacinal, verificou-se a circulação do vírus, mas com poucos registros da doença.
Os resultados apresentados no estudo mostram a importância de agregar dados genômicos aos epidemiológicos, que, juntos, são capazes de ampliar os conhecimentos sobre a transmissão do vírus. “Nossos resultados reforçam a necessidade de se realizar o monitoramento genômico do vírus da febre amarela e também de outros vírus, em todas as regiões do país. Além disso, destaca a necessidade de se considerar, nas análises, as diversas variáveis, como condições climáticas, cobertura vacinal, incidência da doença, que poderão contribuir para as ações de vigilância e controle das doenças”, ressalta Giovanetti.
Além da Fiocruz, participaram do estudo o Ministério da Saúde, o Instituto Evandro Chagas, a Fundação Ezequiel Dias (Funed); o Laboratório Central de Saúde Pública Dr. Giovanni Cysneiros, em Goiás; e o Laboratório de Patologia Veterinária, Campus Darcy Ribeiro, no Distrito Federal.