Pesquisa pode ajudar a prevenir lesão em atletas de alto rendimento

A dor – seja ela causada por treinamento intensivo, lesão, afastamento da família ou eliminação de uma prova importante – é algo com que atletas de alto rendimento têm de lidar no dia a dia da carreira.

Uma pesquisa feita na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) mostrou que o perfil de personalidade do esportista influencia não apenas sua percepção da dor como também a forma com que ele a enfrenta – e isso pode ser tão importante quanto a habilidade física na trajetória para o sucesso.

“Diante da dificuldade de discriminar o limite de suas habilidades e as diferentes formas de dor, o atleta se depara com a possibilidade de lesões. Essa pesquisa tem um caráter preventivo importante. Adaptamos uma metodologia que poderá oferecer indicadores para que a equipe técnica e os profissionais de saúde consigam compreender melhor a queixa do atleta no sentido de identificar quando ele chegou ao seu limite antes que se lesione”, disse a professora Katia Rubio, coordenadora do estudo apoiado pela FAPESP.

O trabalho é fruto de um projeto anterior, intitulado “Memórias olímpicas por atletas olímpicos” e tambémcoordenado por Rubio. O objetivo inicial do estudo com atletas olímpicos, que ainda está em andamento, era relatar as histórias de vida de todos os brasileiros que já participaram do principal evento esportivo do mundo.

“A questão da dor aparecia com muita frequência na fala dos atletas, mesmo quando não perguntávamos sobre o tema. Já quando questionados sobre a dor em suas vidas, a maioria dizia não haver carreira esportiva sem dor. Para alguns, sentir dor no fim de uma sessão de treinamento era a indicação de um bom dia de trabalho”, contou Rubio.

As entrevistas realizadas durante o projeto deram origem ao livro Atletas do Brasil Olímpico (Editora Kazuá), recém-lançado. A obra traz um capítulo dedicado exclusivamente à questão da dor, que conta histórias como a da ginasta Soraya Carvalho, impedida no último momento de participar dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, por uma fratura provocada pelo treinamento excessivo.

“Eu dizia que estava sentindo dores, mas achavam que eu estava reclamando para ganhar descanso, uma vez que o ritmo de treinamentos estava muito intenso. Minha queixa não foi levada a sério [pela equipe técnica] e isso me custou os Jogos Olímpicos”, disse Carvalho no livro.

Há ainda exemplos de atletas com tendência a ignorar os sinais de alerta da dor e a desafiar os limites do organismo em nome do objetivo esportivo, como é o caso do corredor Joaquim Cruz. O atleta sofreu diversas lesões em decorrência do treinamento feito durante anos com tênis e pista inadequados. Na entrevista concedida a Rubio, Cruz relembra as estratégias mentais que desenvolveu para enfrentar a dor e que lhe permitiram ganhar duas medalhas olímpicas – ouro nos jogos de Los Angeles, em 1984, e prata nos de Seul, em 1988.

“Antes dos Jogos Olímpicos de Seul eu tinha passado por uma cirurgia e coloquei na minha mente que tudo ia dar certo e deu certo. Muitas pessoas me falaram que, uma vez operado, você nunca é o mesmo. Isso não me tocava e, para sair daquele clima, eu pensava ‘se isso que estão me dizendo é verdade, não será no meu caso. Eu sou diferente e vou superar’”, contou Cruz.

Para entender mais profundamente as dimensões da dor na vida de atletas profissionais, o grupo de Rubio avaliou 216 competidores brasileiros de nível olímpico atuantes em sete modalidades: atletismo, basquete, futebol, handebol, rugby, tênis de mesa e voleibol.

Todos responderam a um questionário conhecido como Inventário da Dor para o Esporte – originalmente desenvolvido por pesquisadores norte- americanos e adaptado para a realidade brasileira pela equipe de Rubio.

“Em uma etapa piloto do projeto, utilizamos escalas da psicologia hospitalar para a avaliação da dor, mas percebemos que os instrumentos usados na população comum não são viáveis no esporte, pois os atletas são muito mais resistentes à dor. Tivemos de adaptar uma escala específica”, contou Rubio.

Para mensurar o quanto a percepção da dor está relacionada ao perfil psicológico, os pesquisadores usaram um modelo bastante conhecido na área de Psicologia como Bateria Fatorial de Personalidade (BFP). Também foi realizado um estudo qualitativo, no qual entrevistas mais aprofundadas foram feitas com parte da amostra. Parte dos resultados foi divulgada em artigo publicado na Revista Brasileira de Psicologia do Esporte.

“No início, trabalhamos com a hipótese de que haveria dois grandes tipos de dor: aquela relacionada ao treinamento – uma dor habitual e até prazerosa – e a dor da lesão – sobre a qual o atleta não tem controle e que gera um profundo temor, pois coloca em risco a longevidade de sua carreira e a continuidade de patrocínios. Depois incorporamos outras dimensões da dor, como a dor do corte, da saudade da família, da derrota e do esquecimento, que surge no momento em que se faz a transição de carreira”, contou Rubio.

Modelos de enfrentamento

O Inventário para a Dor no Esporte trabalha com cinco subescalas: enfrentamento direto, enfrentamento cognitivo, catastrofização, evitamento e consciência corporal. A soma dos resultados de cada uma das subescalas indica o modelo de enfrentamento da dor de cada indivíduo, explicou Rubio.

Atletas com altos níveis de ‘catastrofização’, por exemplo, tendem a se desesperar diante da lesão e adotam uma postura pessimista. “Eles acham que tudo vai dar errado e isso se reflete no engajamento à fisioterapia. Provavelmente, o período de reabilitação será muito mais longo nesses casos. Por isso é importante um trabalho de psicologia para tentar trazer esse indivíduo para um perspectiva mais otimista”, afirmou Rubio.

Já os atletas com altos níveis de ‘evitamento’ tornam-se menos competitivos quando lesionados, pois tendem a se poupar para evitar a dor. Aqueles com alta pontuação em ‘enfrentamento direto’, ao contrário, tendem a ignorar a dor e a interpretá-la como parte da competição.

“Na parte qualitativa da pesquisa levantamos a história de um atleta que chegou a competir com fraturas. Ele conta que continuou competindo como se nada tivesse acontecido, pois para ele era muito importante o resultado”, contou Rubio.

Os atletas com maior pontuação na subescala ‘consciência corporal’ são aqueles que conseguem perceber os sinais do corpo, como é o caso relatado pela jogadora de voleibol Ana Richa, que atuou primeiro no vôlei de quadra e, depois, no de praia.

“Fomos cobaias das teorias de treinamento. Experimentaram tudo com a gente: a escola japonesa, a russa, a cubana… Eu sabia até onde podia chegar, respeitava meu corpo. Mandavam a gente ir até o limite. Talvez meu corpo seja privilegiado, talvez eu tenha me poupado. O fato é que eu estou aqui, inteira, mas muitas das minhas colegas não estão nessas mesmas condições”, contou Richa no livro.

Por último, há os atletas com altos níveis de ‘enfrentamento cognitivo’, que usam técnicas mentais para manter o foco na tarefa a ser desempenhada, seja o treinamento ou a fisioterapia. “É aquele sujeito que conversa com a dor e também aquele que vai para a internet pegar todas as informações possíveis sobre seu quadro para discutir com a equipe qual é a melhor atitude a ser tomada”, contou Rubio.

Na avaliação da pesquisadora, esse conhecimento sobre o perfil de enfrentamento da dor de cada atleta abre a possibilidade de realizar intervenções mais efetivas – tanto do ponto de vista preventivo como de reabilitação.

“A ideia é aprimorar os instrumentos que usamos na pesquisa para serem aplicados no cotidiano do esporte, colaborando para um programa de prevenção. Os resultados nos permite ainda levantar hipóteses para futuros estudos que ajudem, por exemplo, identificar o perfil de atleta propenso a usar doping”, afirmou Rubio.

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