Pesquisa coloca em xeque efetividade das internações para usuários de drogas

Muitas das clínicas e comunidades terapêuticas diminuem as chances de recuperação dos usuários ao tirar-lhes as esperanças de retorno ao convívio social

Estudo avaliou ex-internos atualmente acompanhados pelo Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas de Ribeirão Preto – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Hoje em dia a internação é vista por familiares e até por dependentes químicos como única saída para quem não consegue deixar o uso problemático de drogas. Com o pânico do consumo de drogas como o crack e o impacto na vida dos usuários, das famílias e da sociedade, a internação em clínicas ou Comunidades Terapêuticas (CTs) é tida como solução para dependentes químicos.

Estudos realizados na USP em Ribeirão Preto, porém, mostram que a realidade pode ser mais amarga. Ao contrário do pretendido, os resultados dessas pesquisas concluíram que a maioria das instituições diminui as chances de recuperação dos usuários ao tirar-lhes as esperanças de retorno ao convívio social.

Estudando o papel dessas instituições como instrumento terapêutico, a psicóloga Mariane Capellato Melo, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, verificou que muito ainda precisa ser revisto, a começar pelas ideias que norteiam as atividades nesses espaços de internação.

Mariane avaliou indivíduos ex-internos, atualmente acompanhados pelo Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (Caps-AD) de Ribeirão Preto e concluiu que a maioria dessas instituições vê e trata esses indivíduos “somente como um desviante, alguém que precisa de prisão ou internação”. Para essas instituições, só a abstinência é a solução para lidar com o uso; o único modo de transformar o caráter dos indivíduos é pelo “isolamento, abstinência, religião e atividades laborais”.

E o pior, diz a pesquisadora, é que essas clínicas/comunidades acabam por “excluir esse indivíduo da sociedade”. Segundo a orientadora do estudo, a professora Clarissa Mendonça Corradi-Webster, a imagem de que os usuários de droga são pessoas descontroladas, impulsivas e com problemas de caráter faz com que “internalizem, acreditem nessa imagem, dificultando estratégias de convivência junto à família e de reinserção social”, afirma.

Esses resultados contradizem recomendações para o trabalho em saúde mental. Conta a professora que os longos meses de isolamento social não os ajudam a desenvolver recursos para lidar com problemas do dia a dia. Assim, as internações se tornam recorrentes. Ao sair da internação de longo prazo, “o indivíduo não possui ferramentas para lidar com dificuldades e acaba retornando ao consumo problemático de drogas. Vira um círculo vicioso”.

Alternativa à morte ou à prisão

As internações geralmente acontecem em locais afastados, normalmente na zona rural, onde o usuário de drogas fica internado de seis a nove meses em abstinência total. Lá, os internos realizam atividades espirituais (orações e leitura de textos religiosos); laborterapia (atividades domésticas e de campo, como lavar a louça, limpar o ambiente, cuidar da horta e do curral) e compõem grupos de autoajuda com os monitores – ex-internos que são chamados para trabalhar nesses locais.

Analisando os depoimentos dos ex-internos, as pesquisadoras verificaram que esses indivíduos veem as clínicas/comunidades como um lugar de cuidado e tratamento para aqueles que desejam largar as drogas; de fuga e proteção física, devido aos traficantes, à polícia, aos conflitos familiares e comunitários, e, também, como um local de violações de direitos.

Apesar de se sentirem vulneráveis e desgostosos com a internação, os ex-internos acreditam ser este um percurso natural para pessoas que fazem uso de drogas e única forma de cuidado possível, além da morte ou prisão. Para Mariane, “isto se deve à ampla divulgação da internação como única estratégia de cuidado”.

Os estudos revelaram que muitos desses locais são precários, sem higiene, alimentação e estrutura adequadas e que não identificam os internos em suas individualidades. E essa realidade é bem diversa da apresentada à família antes da internação. Agressões físicas são comuns, agravadas pela falta de profissionais para lidar com os conflitos entre internos e monitores.

Segundo Clarissa, muitas dessas situações persistem porque a maioria das instituições funciona sem o registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT). “É muito comum ex-usuários alugarem uma chácara e darem início a uma clínica/comunidade, sem nenhuma regulamentação ou fiscalização”, alerta. A professora orienta às famílias investigarem com calma esses locais e, antes de decidir pela internação, lembrar que outras modalidades de atenção podem ser mais produtivas.

Investimentos contra o descaso

A recomendação do SUS é a de que o atendimento em saúde dever ser organizado em redes. Na saúde mental, há a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para articular o cuidado desde a atenção básica, nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), até os hospitais. Caso necessite de tratamento, o usuário de drogas pode se dirigir espontaneamente até um Caps-AD.

Ainda, segundo Clarissa, “nesse serviço, é construído em conjunto com o paciente, as possibilidades de tratamento e atividades a serem realizadas, podendo, se necessário, ser internado em hospitais especializados ou nas CTs regularizadas pela Anvisa e FEBRACT, com acompanhamento do Caps-AD até o retorno do usuário à sociedade”.

A falta de investimentos torna os serviços públicos sobrecarregados e inviabiliza as redes de saúde, o que incentiva a criação de clínicas/comunidades. “Percebe-se, então, que esses locais vêm tampando um buraco existente na rede de assistência pública. Em Ribeirão Preto, por exemplo, existe apenas um Caps-AD”, afirma Mariane.

O fortalecimento das Raps, como trabalho intersetorial, é defendido pela professora, já que não se trata apenas de um problema de saúde, mas também de assistência social, de educação, de trabalho e de moradia.

Ainda são poucos os estudos sobre as internações em clínicas/comunidades. Os já realizados apenas utilizam estes espaços como um local de coleta de dados. Não refletem sobre os métodos utilizados ou a inserção da comunidade como parte da rede de atenção de saúde. Com esse estudo, as pesquisadoras consideraram um “posicionamento ético” sobre a realidade de uma população “constantemente criminalizada pelos discursos dominantes e, também, de denúncia do descaso e desamparo vivido pelos entrevistados. Podemos repensar o espaço que as internações têm na saúde”.

A dissertação Sentidos Construídos sobre a Experiência de Internação em Comunidades Terapêuticas com Pessoas em Tratamento por Uso de Drogas foi defendida em junho deste ano, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP da USP.

Gabriela Vilas Boas, de Ribeirão Preto

Mais informações: e-mail clarissac@usp.br