‘Pedagogia do terror’: testemunho de um ex-preso político da democracia

Ele foi um dos presos políticos da atual democracia brasileira. Participando de uma manifestação organizada pelos professores municipais e estaduais do Rio de Janeiro, que estavam em greve, Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz, foi detido junto com dezenas de outras pessoas no dia 15 de outubro. Acusado sem provas e sem direito à informação ou à presença de advogados, foi encaminhado para a delegacia e, na sequência, para dois presídios, incluindo Bangu 9. Segundo ele, circulou pelos “porões da democracia brasileira”. Desde o início de junho, Paulo Bruno vinha filmando as manifestações que tomaram as ruas do Rio de Janeiro como parte do seu trabalho de pesquisa. Levou algum tempo para que conseguisse falar sobre o assunto, mas nesta entrevista ele narra as humilhações e violências sofridas pelos presos políticos, descreve a rotina de violação de direitos do sistema carcerário brasileiro, destaca a solidariedade dos presos comuns e chama a atenção para a fragilidade das lutas políticas diante do terror que o Estado, representado no caso pelo governo estadual, pode provocar. Como, na prisão, não tiveram acesso sequer a papel e caneta, os registros que se seguem ficaram registrados, até então, apenas na memória do entrevistado.

Você está sendo acusado de quais crimes?

Dano ao patrimônio, roubo, incêndio e organização criminosa. Eu fui preso por volta de 22h30 do dia 15/11 e, no entanto, no documento que assinei no IML constava como se eu tivesse quebrado alguma coisa, por volta das 18h nas proximidades da rua Evaristo da Veiga. Não há nada quebrado lá. Além disso, nesse horário estava a caminho da Avenida Presidente Vargas, depois de embarcar num trem do metrô na estação de Del Castilho, acompanhado de duas pessoas com as quais trabalho.

Vocês sabiam que estavam sendo presos, para onde estavam indo e por que?

Não. Estava na escadaria da Câmara dos Vereadores e o policial só me puxou. Eu tropecei na alça da mochila e minhas moedas se espalharam. Reclamei disso e, autorizado a recolhê-las, pude me recompor. No ônibus, outro policial mais novo, com pouco menos de 30 anos talvez, ficou perto da porta e mandou entrar. Nisso foram entrando pessoas. Na Evaristo da Veiga, próximo à avenida Rio Branco, alguns manifestantes ainda tentaram impedir que o ônibus saísse e os policiais que estavam em frente ao Municipal jogaram bomba de efeito moral para dispersá-los. O ônibus foi embora com uma escolta, vinham dois de moto — de negro também, acho que eram do choque —, com a arma apontada para a gente, dizendo para fechar a janela, xingando. Tentamos abrir a janela e um deles dizia: ‘fecha a janela senão jogo gás de pimenta em vocês’. Aí fechamos a janela. Até então o pessoal estava revoltado, ninguém tinha noção do que iria acontecer. Eu falava para ter calma, era o mais velho. A gente tinha que estar sempre calado e em nenhum momento falaram para onde iríamos. Na delegacia, permanecemos a maior parte do tempo no ônibus. Ficamos lá de molho até 12h30 do outro dia. Soubemos que duas pessoas que estavam na 25ª, se não me engano, ficaram em condições bem piores, num lugar alagado, com um banheiro. No nosso caso, ficamos em lugares da delegacia sentados ou de pé e depois retornamos para o ônibus. Recebemos orientação dos advogados que chegaram à 37ª DP algum tempo depois de só depormos em juízo. Passamos uma procuração para os advogados do DDH [Instituto de Defesa dos Direitos Humanos] e não depusemos.

Como foi a transferência para o presídio?

Pouco antes de 12h30 os carros começaram a se movimentar, vimos chegar aquele furgão usado pelo batalhão de choque, começaram a deslocar os carros em frente à delegacia, a gente previu que fosse acontecer alguma coisa. Imaginamos que iríamos ser transferidos, mas não sabíamos para onde porque não falaram. Alguns PMs começaram a ser mais irônicos e mais agressivos com palavras. Quando alguém pedia alguma coisa, respondiam de forma irônica. Sempre de forma intimidatória. Até que meio dia e pouco — imagino que nesse horário porque também não tínhamos relógio —, colocaram a gente na traseira desse furgão, que era dividido no meio, com dois bancos laterais. Ia uma pessoa em pé e outra sentada, algemadas. Eu não tinha noção de que algema era objeto de tortura, para mim, era só para segurar a mão do preso. Mas conforme você vai mexendo, ela vai apertando. Então, assim que o carro saiu, a algema encaixou no osso do meu pulso, causando uma sensação muito ruim, eu tentei mexer e percebi que ela apertou. Fomos para o IML [Instituto Médico Legal]. Nessa hora eu já não aguentava mais, pedi para tirarem e acabaram abrindo [a algema] lá. Mas isso nem contou lá no exame de corpo delito porque é uma coisa muito rápida, os caras não querem muita conversa. O tratamento que a gente recebeu em todo momento, a não ser em poucas ocasiões no interior da 37ª DP, era como se fôssemos criminosos. Dali saímos também sem que falassem nada. Nos algemaram de novo, colocaram no furgão e fomos para São Gonçalo, para o presídio Patrícia Accioly, no bairro Guaxindiba. Nas transferências, você é sempre humilhado, chamavam a gente de ‘black bosta’, criminosos, assassinos, vagabundos, vândalos etc. Na saída da 37ª, dois policiais nos chamaram de criminosos, falando que seríamos estuprados no presídio. Diziam que iríamos pagar por termos nos metido com policial, que tínhamos matado o amigo deles, incendiado o carro [da polícia]. Tentavam nos filmar com seus celulares. Quando chegou lá, em Guaxindiba, novamente um cardápio de ofensas e atos para nos amedrontar. Você entra, tira a roupa, fica de cócoras, levanta a sola do pé, mão, tudo para ver se está com algum objeto, e depois te encaminham nu para receber calção e camiseta. Para lá a gente foi com a roupa do corpo. Na delegacia da Ilha do Governador, deixamos as coisas com os advogados, porque tinham avisado que iríamos perder tudo no presídio. Primeiro ficamos acocorados num corredor dos presos de alta periculosidade (segundo eles próprios). A primeira pergunta de um desses presos foi se a gente tinha dinheiro. Todo mundo de mão para trás e cabeça para baixo, em pé ou sentado. Não demos ouvido. Começaram a perguntar o que a gente fez, mas ninguém respondeu. Por fim, ele perguntou se a gente estava em manifestação. O preso da frente falou ‘esse Cabral é um filho da puta, tem que sair!’ e o da cela de trás concordou: ‘É isso mesmo!’.
Dali fomos para uma cela num corredor e ficamos só nós, os presos políticos. Eram celas para seis pessoas, com três beliches de cimento. No canto, o banheiro, com um buraco no chão — um vaso sanitário, chamado de “boi” na linguagem da cadeia — e um chuveiro no alto, sem registro. A gente descobriu que a água era aberta duas vezes ao dia. Foi ato contínuo entrarmos na cela e todo mundo se apresentar. As pessoas não se conheciam. A sensação de solidariedade coletiva minimizava a apreensão causada nos deslocamentos (DP-IML-presídio). Entrar na cela naquela circunstância era como “chegar em casa”: enfim, apesar da falta de banho, teríamos a possibilidade de deitar e descansar.

Como foi a rotina dentro do presídio?

Inicialmente fomos informados sobre como funciona o sistema. Rasparam a nossa cabeça também antes de entrarmos na cela. Recebemos sabonete, escova de dente e creme dental. Toalha não! Os presos mais antigos e com bom comportamento fazem o serviço de cortar o cabelo, dar informes sobre o funcionamento, servir as refeições. Eram feitos três “conferes” ao dia: gritavam no corredor (Confere!), ou tocavam na grade e você teria que se posicionar (erguido, mãos para trás e olhar para o chão) para eles contarem. Tinha pão e café pela manhã, almoço, jantar e um copo de uma bebida que parecia guaravita. A gente foi se acostumando com a rotina. No primeiro dia, não chegou água. Chegamos ao presídio quatro horas da tarde talvez, estando desde o dia 15 sem tomar banho — já era dia 16 anoitecendo. Falaram que abririam a água por dez minutos. Nesse dia abriram a água devia ser 3h da manhã. Tinha muito mosquito nesse presídio. Já trabalhei na Amazônia, andei em várias aldeias, mas nunca vi coisa igual. Não dava para dormir. Eles deram um cobertor e a esperança era que o cobertor ajudasse. No meu caso, era velho e furado, então não adiantava porque os mosquitos entravam. Essa primeira noite foi sofrida. A gente meio que fica na expectativa de sair, mas já estava conversando e encarando a possibilidade de ficar mais tempo. As longas conversas entre o grupo que dividia a cela e a comunicação com outros presos políticos de outras celas serviram para nos mantermos num estado emocional equilibrado. Na segunda noite nesse presídio já havíamos aprendido a fazer incensos com papel higiênico, o que afastava os mosquitos, mas deixava a cela esfumaçada.

Vocês receberam a visita de alguém?

Primeiro, recebi visita dos advogados da Asfoc [Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz], Jorge da Hora e Fábio. Eles falaram da mobilização que era prevista para acontecer na Fiocruz e perguntaram sobre o meu estado. Receber notícias de fora do presídio causou um sentimento desconhecido. Não tinha a menor ideia do que poderia estar acontecendo do lado de fora. Era como se estivesse também com o pensamento aprisionado, apesar de consciente do que acontecia. Depois, na tarde do dia 17, chegaram os advogados do DDH junto com uma advogada ligada a uma ONG que trabalha com direitos humanos em presídios. O trabalho dela consiste em visitar todos os presídios do sistema do Rio de Janeiro e ver as condições dos presos. Acho que tinha alguém da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia [Legislativa]. Um pouco depois chegou o [deputado estadual] Marcelo Freixo. Fizemos duas reuniões num refeitório onde tivemos a primeira oportunidade de ver o conjunto dos presos. Dos 19 que éramos quando chegamos à 37ª delegacia, ali já éramos 62. Todo mundo se cumprimentava, apertando a mão. Recebemos uma carta de pessoas de fora. Foi um momento de muita emoção e houve um agradecimento a elas. Aquilo foi muito bom porque a gente estava isolado. É outro universo: no presídio você não tem essa dimensão do que acontece do lado de fora. É outro mundo. Tínhamos consciência de que éramos presos políticos. Foi nosso primeiro contato coletivo com o mundo. O Marcelo Freixo me pareceu muito abatido, falando que a situação era grave, que ele nunca tinha presenciado uma situação dessa no Rio de Janeiro. Comentou que se falava em colocar as forças de segurança nacional na rua e que o Beltrame chegou a aventar isso. E a imprensa estava jogando pesado na nossa criminalização.

E a transferência para Bangu 9?

Na madrugada do dia 17 para o 18, umas 3h30 da manhã, fomos acordados pelos caras batendo [na grade]. “Sai, sai. Deixa tudo!!!”, gritavam. E os meus óculos ficaram na cela. Foi o momento de maior tensão: escuro, aqueles caras enormes todos de preto, gritando muito. A sensação, pelo tratamento, era de que iriam executar a gente. Colocaram a gente num pátio externo, sempre gritando, humilhando, xingando. Eu não fui agredido, mas uma parte do grupo foi agredida com palmatória. Eles queriam que o pessoal dissesse por que o estuprador da Rocinha estava com a orelha cortada e o rosto queimado. Tinha três presos comuns com a gente, um deles era esse estuprador e alguém queimou o cara, só que ele não dividiu cela com a gente em nenhum momento. Mas os caras queriam que a gente dissesse quem foi. Isso eu ouvi do lado de fora de um portão grande de ferro. Fui colocado para fora com outro grupo, de cabeça baixa. Chovera e o chão estava molhado e todos nós estávamos descalços (desde são Gonçalo até a libertação permanecemos nesse estado). Começamos a ouvir interrogatório e, em seguida, batidas e as pessoas gritando. Depois soubemos que era a palmatória de madeira. Isso durou alguns minutos. Fomos colocados num ônibus todo escuro. Dessa vez, sentamos quase todos. Um dos presos políticos estava por desmaiar e outros se esforçavam para mantê-lo acordado. Não era possível ver os rostos mesmo dos que estavam mais próximos de nós. Havia pouca circulação de ar. O Freixo havia dito que possivelmente iríamos para um presídio próximo para aguardar uma solução na justiça. Seria um presídio em São Gonçalo, que ele disse que era mais tranquilo, que estava disposto a aceitar o grupo, tinha espaço. Como eles tiraram a gente de madrugada, só podíamos imaginar para onde estávamos indo, porque estava escuro e, sem relógio nem nada, você perde a noção de espaço e tempo. Só sentíamos o balanço do ônibus, só sabíamos que estávamos em rua esburacada. Depois de algum tempo, pela batida e por alguma luz que entrava, nos demos conta de que estávamos cruzando a ponte Rio-Niterói. Mas, adiante alguém exclamou: “Deodoro!”. Pouco depois chegamos ao Complexo Penitenciário Gericinó, mais especificamente, no presídio Bangu 9 e foi novamente aquela coisa de os caras nos tratarem mal. A fala e a atitude de um policial ficou impregnada na minha memória: ‘Só tem vocês dois de pretos aqui?’. Em seguida segurou a cabeça de um deles e bateu algumas vezes contra a parede. Teve outro preso político que pedia insistentemente para ir ao banheiro, que não aguentava mais. Estavam muito próximo de mim. Gemia… Eu sussurrava para ele: respira fundo. Os caras apenas ironizavam e procuravam humilhá-lo. Mesmo depois de uns cinco pedidos desesperados, o rapaz não teve autorização e evacuou nas calças. Depois disso ordenaram que lavassem o chão.

Fomos para a cela. Quando a gente passa pela triagem, perguntam qual a nossa facção e são apresentadas as seguintes opções num formulário: Comando Vermelho, Amigo dos Amigos, Povo de Israel, milícia ou neutro. Nos identificamos como neutros e ficamos numa galeria juntos com o Povo de Israel, que são os presos que se converteram. O melhor de Bangu é que tinha uma torneira com água 24 horas; no outro não tivemos nem água para beber até a primeira abertura do chuveiro, para banho muito menos. Se quiséssemos beber aquela água imunda, pelo menos havia água, não iríamos morrer de sede. Mas a cela era mais estreita, escura, úmida e quase não tinha espaço para circular. Parece que circulou a informação de que haveria visita do pessoal dos direitos humanos. Aí deram um jeito de transferir a gente para outra cela no final do corredor, onde entrava luz no final da tarde, tinha sol, foi um alento. Além de um pardal que entrava e saía da cela através da grade no alto da parede (no final da tarde ele se alojou num buraco no teto da cela). Dessa cela ouvíamos cantos de outros pássaros. Recebemos somente um lençol branco e limpo que, pelo fato de ser bem largo, dava para cobrir a espuma sobre a qual deitava e, ao mesmo, servir de coberta. As poucas horas que restavam da madrugada permitiram um breve cochilo. No dia 18, acordei com a sensação de que sairia: lavei minha camiseta no banho com caneco e sabonete. Eu pretendia sair limpinho do presídio, estava imundo. Nessa passagem por Bangu, os presos receberam a gente bem. Eles falavam que a gente representava os parentes deles do lado de fora, que a luta era por eles também. Foram acolhedores e respeitosos conosco.

Quando você soube que seria solto?

Durante reunião com o pessoal dos direitos humanos, que aconteceu justamente no corredor, diante da cela onde eu e mais cinco presos estávamos, deram a informação de que tinha saído um habeas corpus. E que a partir desse habeas corpus, em meu nome, a juíza estendeu o benefício para os outros. Dali, voltamos para a cela. O habeas corpus só chegou ao presídio no final da tarde. Nesse meio tempo, chegaram advogadas do DDH, a Luiza maranhão e mais duas que conheciam pessoas comuns a mim e a outros dois presos. A gente foi conversar com as advogadas e, na volta, foi interessante porque um preso parou a gente para conversar no corredor, onde havia outros dois presos soltos. Esse preso falou: ‘Pára que aqui é tranquilo, pode parar’. Parei. ‘Aperta minha mão aí’. Apertei. Tinha outros três na grade festejando a gente e que também queriam apertar as nossas mãos. Eu saí, o Deo [professor da rede municipal do Rio, companheiro de cela] veio mais atrás, parou um pouco e conversou com eles. Eles falaram: ‘Ah, você é professor?A gente é aluno do crime, a gente veio agradecer vocês’. Surpreendeu a gente: por incrível que pareça, tivemos a solidariedade de quem – os policiais falaram – iria nos maltratar. Enfim, foi o ultimo dia lá, saímos à noite. Durante a oração que é feita sempre às 18h, segundo comunicara o preso que servia as refeições, momento em que os presos leem trechos da Bíblia, discursam, cantam — as falas e canções pareciam ter sido construídas no próprio espaço carcerário, pois falavam, muito da situação dos presos —, um dos carcereiros fez uma chamada no início do corredor, o que interrompeu a oração e criou um estado de suspense. Chamaram os nomes dos nove primeiros libertos. A nossa saída pela galeria foi algo comovente! Braços eram estendidos para fora das celas para nos cumprimentar. Olhos brilhantes nos acompanhavam enquanto aguardavam cumprimentos. Ouvia-se um grito: Liberdade! Esperamos quase duas horas fora da cela. Depois saberíamos que foi feito de tudo para que ficássemos mais tempo presos, apesar de os advogados da Asfoc já terem obtido dois habeas corpus antes do que definiu a saída do nosso grupo, detido na 37ª DP.

Dá para descrever os momentos de pavor?

Tem um pavor que é para disciplinar o corpo e, no nosso caso, intimidar. A todo momento falavam que, como era a primeira vez, a gente estava sendo tratado como homem, e que da próxima seríamos tratados de forma diferente. Falavam para que tomássemos cuidado para não voltar para lá. E funciona: nessa noite mesmo tive um sonho com um monte de policial de fuzil atirando nas pessoas aleatoriamente. Isso num nível psicológico. [Mas teve] o físico também, eles bateram em algumas pessoas. Imagino que elas estejam mais frágeis do que eu. Tem essa coisa de incutir o medo. É uma espécie de pedagogia do terror, de você ser educado para não se manifestar, não questionar. Tanto que os últimos atos estiveram meio vazios, as pessoas estão recuando porque foi feita uma coisa exemplar. Isso me faz pensar que essa estrutura de terror não se extingue com mudança de governo, eleições, ela está muito bem estruturada como sistema de tortura… Aparentemente é um sistema legal, no entanto, é uma estrutura em que você entra e é engolido. Quando vem pressão de fora, é diferente. Fora isso, é o sistema de terror. É impossível ressocializar (como sugere o calção que recebemos, com a sigla SEAP e a palavra ressocialização) em tais condições.

Você diz que existe uma pedagogia do terror que funciona. Como é voltar a uma manifestação agora?

Eu soube de pessoas que não pretendem voltar a manifestações por enquanto. Para mim foi difícil. Nos arredores da Cinelândia, uns dias depois da minha libertação, quando vi o carro e um micro-ônibus da polícia, foi uma sensação muito estranha. Eu fui para casa. A sensação é de que iria repetir tudo que eu falei anteriormente, uma coisa incontrolável, não de ser preso, mas de sentir tudo o que eu senti, de escuridão, de ser puxado para o escuro. De ter sido sequestrado. Mudou também o meu olhar com relação aos policiais. Eu tinha a expectativa de que pudessem se portar como trabalhadores, servidores públicos. Agora eu até entendo a situação de precariedade, que os caras têm que fazer isso para sobreviver, a questão da hierarquia militar etc., mas os possíveis resquícios de solidariedade diminuíram muito. Com a forma como muitos deles tratam as pessoas, não dá para perceber qualquer sinal de compaixão.

Qual a sua avaliação com relação ao sistema judiciário e carcerário brasileiro considerando a situação daqueles que passaram por essa experiência?

Se você está na mão do Estado, está refém do Estado. Estamos em situação de fragilidade. Hoje os grupos mais conservadores estão unidos em torno de um projeto que, a pretexto de viabilizar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, visa frear manifestações para assegurar o uso da máquina e dos recursos públicos para garantir os grandes investimentos, o lucro, a expropriação de terras. Não temos certeza se, quando formos a julgamento, podemos ganhar. Essa sociedade democrática que a gente vive é para quem não está dentro desse sistema prisional, só serve para quem nunca passou por lá. Depois que você cai ali, vê que é tudo muito frágil. No escravismo brasileiro, até o século XIX, os escravos que cometiam os “crimes” de fuga das fazendas ou atentado ao “seu senhor”, por exemplo, eram marcados/queimados com a letra “F”. Algo aparentemente superado historicamente se repete com a “marca” que a “passagem” pelo “sistema” deixa em nós. Qualquer um pode ser pinçado, cair ali e pronto! O objetivo dos grupos que controlam as estruturas de poder do Estado é ter você na mão e prorrogar esse processo por anos. Qualquer um de nós, se voltar, com certeza, terá outro tratamento. Eles nos avisaram! Há os que ainda acreditam na possibilidade da luta, garantida nos “direitos constituídos”. Penso que não tem mais direito constituído… Se por um lado a solidariedade presente entre companheiros da Fiocruz e de Manguinhos, em especial, foi extremamente importante para mim, por outro, é surpreendente o silêncio por parte de algumas entidades de classe e parte do meio acadêmico com relação a esse estado de coisas, onde cresce a opressão contra a expressão popular nas ruas, o que coloca o Estado Democrático de Direito como privilégio para poucas pessoas. Também é desprezível o reacionarismo expresso em artigos e ações de intelectuais que, outrora, eram consideradas referências importantes para a crítica ao autoritarismo.

Ainda tem gente presa…

Tem o Jair e o Rafael, um morador de rua. Ambos negros. Segundo as notícias que circulam na internet o Rafael foi preso num prédio abandonado na Lapa, onde ele estava morando. Foi no dia 20 de junho, aquele em que a polícia saiu jogando bomba de gás para todo lado. Ele estava caminhando para o lugar onde iria dormir com uma garrafa plástica de detergente e uma de água sanitária e alegaram que ele estava com material inflamável, com líquidos para produzir incêndio. Foi preso. O cara é morador de rua, está há cinco meses preso, e esteve, durante algum tempo, sem defesa. Já o Jair parece que foi preso por averiguação, e pelo fato de ter passagem anterior, estão dificultando o caso dele. Na reunião com as advogadas, no Bangu 9, foi falado que estava sendo difícil conseguir o habeas corpus para ele.

Você falou que estávamos muito fragilizados e houve uma grande união de forças para acabar com as manifestações. Mas mesmo depois dessa experiência traumática, você continua indo. Por quê?

O que impulsiona a gente a participar é a solidariedade. Aqueles que decidiram o que fazer conosco não têm noção de que, dentro da cadeia, possibilitaram a construção de uma solidariedade entre pessoas que nem se conheciam. Criaram uma liga entre essas pessoas, conheci pessoas de caráter muito firme. A grande maioria lá ficou muito solidária. Eu vejo que de toda essa experiência ruim, de aprisionamento, de repressão, está consolidando um grupo de muitas pessoas com discernimento sobre os fatos e sobre as injustiças presentes em nossa sociedade. Tive oportunidade de rever pessoas que dividiram cela comigo num ato recente de solidariedade aos presos e ex-presos. Algo inexplicável, a repressão produzira laços de amizade e confiança.
Eu volto para as manifestações com a vontade de filmar, mas não sei se vou continuar filmando por enquanto, apesar de querer dar continuidade aos registros históricos e etnográficos que iniciei em junho. Vivemos um processo histórico muito vigoroso e complexo sobre o qual precisamos refletir muito e para isso é necessário que ele seja registrado a partir de olhares diversos. Sou apenas um deles. Também não dá para abdicar de questionar o sistema da forma como está colocado. Afinal de contas, é difícil pensar na construção de um conhecimento científico neutro, principalmente, se levarmos a sério o que sugeria Paulo Freire ao dizer que toda neutralidade afirmada corresponderia a uma opção escondida.

Assim, a passagem pelo sistema prisional e carcerário não poderia ofuscar o nosso olhar sobre a sua dinâmica, sobre a forma como atuam os servidores públicos que os mantêm ativos e, sobretudo, sobre as condições nas quais se encontra seu “público-alvo”, formado por pobres, negros e mestiços em sua grande maioria. Nessa perspectiva, é difícil observar sem críticas um serviço público, financiado com recursos públicos, utilizado para punir parte desse público (presos, seus parentes e amigos). A crítica a esse tipo de serviço não pode ser colocada sem a devida correlação com toda a estrutura de governo do qual faz parte. Na atual conjuntura, essa crítica pode resultar na marcação de um “F” nas nossas costas ou no nosso encarceramento.

Entrevista concedida a André Antunes e Cátia Guimarães – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

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