Pesquisadores da London School of Hygiene and Tropical Medicine, da Inglaterra, criaram uma versão geneticamente modificada do parasita causador da doença de Chagas capaz de emitir luz vermelha, o que tem permitido monitorar a infecção em camundongos mesmo em níveis muito baixos.
Originalmente desenvolvida para ajudar a compreender a enfermidade em sua fase crônica, a técnica tem se mostrado uma poderosa ferramenta para medir a eficácia de drogas antichagásicas.
O método foi apresentado por um de seus idealizadores, o professor de biologia molecular John Kelly, no dia 22 de junho, durante a programação da São Paulo School of Advanced Science on Neglected Diseases Drug Discovery – Focus on Kinetoplastids (SPSAS-ND3).
O evento foi realizado no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, com apoio da FAPESP.
“Tem sido muito difícil estudar a doença em sua fase crônica, pois há uma carga muito pequena do parasita Trypanosoma cruzi no organismo e ela acaba ficando fora do radar dos métodos tradicionais. Já o limite de detecção desta nova técnica está entre 100 e 100 mil unidades do parasita, o que é muito sensível. Teoricamente, poderíamos identificar a infecção mesmo se ela estivesse restrita a uma única célula”, explicou Kelly em entrevista à Agência Fapesp.
Geralmente transmitida pela picada do inseto conhecido como barbeiro ( Triatoma infestans) ou pela ingestão de alimentos contaminados, a doença de Chagas tem uma primeira fase aguda que pode ser assintomática ou apresentar sintomas como febre, mal-estar, inflamação e dor nos gânglios, vermelhidão, inchaço nos olhos (sinal de Romanã), aumento do fígado e do baço.
Anos depois podem surgir as complicações da fase crônica, sendo a principal o alargamento dos ventrículos do coração (condição que afeta cerca de 30% dos pacientes e costuma levar à insuficiência cardíaca) e a dilatação do esôfago ou o alargamento do cólon (que acomete até 10% dos infectados e pode levar à perda dos movimentos peristálticos e à dificuldade de funcionamento dos esfíncteres).
“Um dos grandes enigmas que os cientistas tentam desvendar é por que algumas pessoas sofrem sintomas severos na fase crônica da doença e outros são praticamente assintomáticas. O que sabemos é que, em todos os casos, a infecção pelo T. cruzi é para toda a vida. De alguma forma, o parasita consegue evitar ser eliminado totalmente pelo sistema imunológico. Fica confinado em algumas poucas células e, em momentos de imunodeficiência, volta a se proliferar”, disse o pesquisador.
Para entender melhor como isso acontece, os cientistas ingleses infectaram camundongos com o parasita geneticamente modificado para expressar o gene da enzima luciferase de vagalumes.
O grande diferencial da pesquisa, porém, foi modificar a enzima para que a reação catalisada por ela gerasse uma luz na faixa vermelha do espectro luminoso, que é melhor absorvida pelos tecidos corporais e, portanto, aumenta a sensibilidade da técnica.
Para isso o grupo contou com a colaboração do pesquisador Bruce Branchini, do Connecticut College, nos Estados Unidos.
“Ao reagir com a proteína luciferina, que é seu substrato, a luciferase normalmente causa a emissão de luz entre as faixas do verde e do amarelo. Mas a maior parte da luz nos tecidos é absorvida pela hemoglobina, que é vermelha. Ou seja, a hemoglobina absorve todas as cores, exceto a vermelha”, explicou Kelly.
Além disso, acrescentou o cientista, ondas curtas como as da luz azul ou verde são dispersadas mais rapidamente que as da luz vermelha, que são maiores.
“Por esses dois fatores o método ganhou maior sensibilidade com a emissão de luz vermelha”, disse Kelly.
Primeiros experimentos
Os camundongos infectados pelo parasita modificado foram acompanhados ao longo de 377 dias, sendo que após o 70º a doença entra em sua fase crônica.
“Inicialmente fizemos uma série de testes para ter certeza de que a modificação genética não teria nenhuma interferência na capacidade do parasita de infectar as células ou de se reproduzir, pois isso poderia enviesar os resultados”, contou Kelly.
Quando os pesquisadores injetam nos camundongos a proteína luciferina, ela é oxidada pela luciferase e ocorre a emissão de luz vermelha, que é captada com um equipamento dotado de uma pequena câmera e conhecido como IVIS Spectrum.
As imagens geradas permitem não apenas medir a carga parasitária em cada momento da infecção como também saber em que células e órgãos os parasitas estão concentrados.
“Descobrimos, com o método, que o intestino é o local em que o parasita se esconde na fase crônica. Por algum motivo o sistema imunológico consegue limpar o T. cruzi de todos os órgãos, exceto do intestino, e agora tentamos entender por que isso acontece”, contou Kelly.
Ao induzir a imunodeficiência nos animais com a administração do quimioterápico ciclofosfamida, os cientistas observaram que a carga parasitária voltou a crescer e outros órgãos passaram também a apresentar sinais da infecção.
“Como pelos métodos tradicionais era impossível detectar a carga parasitária na fase crônica da doença, não conseguíamos saber se um determinado medicamento era realmente capaz de promover a cura da doença ou não. Conseguimos avançar nesse sentido”, disse Kelly.
Em um dos experimentos, foram comparados os efeitos do benzonidazol, hoje padrão-ouro para o tratamento da doença, e do posaconazol, que era considerado uma grande esperança para os pacientes, mas não foi bem-sucedido nos primeiros ensaios clínicos.
“Tratamos os camundongos infectados com posaconazol e observamos que a carga parasitária parecia ter sido erradicada. Mas, quando induzimos a imunossupressão com ciclofosfamida, a infecção retornou. Ou seja, os animais não estavam de fato curados”, disse Kelly.
O mesmo experimento foi feito com o benzonidazol e, após a imunossupressão, até mesmo a infecção no intestino havia sido erradicada. “Os resultados sugerem que o benzonidazol realmente é eficaz para controlar a infecção crônica”, disse o pesquisador.
Na avaliação de Kelly, a técnica de bioluminescência pode ser aplicada para entender também os mecanismos da infecção causada por outras espécies de Trypanosoma e por parasitas do gênero Leishmania.