Arte Moisés Dorado sobre fotos Agência Brasil e Freepik

Pandemia de coronavírus começa a dar sinais de novo crescimento no Brasil

Pressão pela reabertura precoce de locais como shopping centers – mesmo com escolas fechadas – ajudou a manter o nível de casos e óbitos no Brasil num patamar alto por um longo período, com queda lenta. Agora, dados apontam para estabilidade e possível alta.

Ficam cada vez mais sólidas as evidências de que os casos de covid-19 voltaram a subir. Pesquisadores discutem causas, medidas a tomar, e explicam como conseguem fazer um retrato confiável da pandemia mesmo em meio a um “apagão de dados.

Conseguir dados diretos para analisar a situação e tendência para a pandemia de covid-19 não é uma tarefa fácil no Brasil. Mas pesquisadores fazem seus esforços, contornam dificuldades e nos dão um esboço do que pode estar por vir. E a história que quase o consenso deles conta é parecida: há indícios fortes de um novo crescimento dos casos, mesmo que ainda não apareçam nas contagens diárias divulgadas pelos governos e mesmo que alguns a nomeiem como segunda onda e outros não.

O professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) Paulo Lotufo fala na arremetida de um avião, que estava sim descendo, mas não chegou a pousar e voltou a subir. Já o médico e pesquisador do Hospital Universitário da USP Marcio Bittencourt vê o crescimento, mas não chama isso de segunda onda, porque não acredita que tenhamos saído da primeira. “A gente continua com um padrão de transmissão sustentada na comunidade”.

Para Otavio Ranzani, médico e epidemiologista do Instituto de Saúde Global (ISG) de Barcelona, na Espanha, “tudo indica que está tendo um repique sim. Para alguns locais, isso já traz distúrbios ao sistema de saúde, que é o critério que adoto para definir uma onda. Se a lotação nos hospitais de São Paulo se confirmar por mais de uma semana, vou considerar que sim, já há uma segunda onda”.

Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, conta que o cenário já era preocupante desde o fim de outubro. “Fiz um estudo sobre a taxa de infecção (Rt) no início de outubro no Brasil e ela estava em 0,95, com tendência de alta, e quatro estados acima de 1. Quando fiz de novo o estudo, no final de outubro, o Rt do Brasil já era de 1,12, com uma taxa maior que 1 em 15 estados, em alguns deles 1,3. A minha opinião é que já estamos vivendo sim o começo de uma segunda onda”.

Causas e lições
E quais as causas desse crescimento? Márcio Bittencourt diz que aparentemente, a principal razão é a redução das medidas de contenção: isolamento, uso de máscara e distanciamento físico. “Como essas medidas são graduais, não surpreende que a progressão no número de ocupação de leitos também tenha sido gradual. Na Europa, onde temos um componente sazonal [chegada das estações mais frias], parece ter sido algo muito mais explosivo do que aqui, onde não há esse componente. Aqui é algo progressivo, lento”, afirma Bittencourt.

Para Otavio Ranzani, até pela falta de testes e números confiáveis, “o Brasil foi flexibilizando sem ter uma ideia clara do que estava acontecendo. Uma parte do que a gente acha que havia controlado, na verdade não estava tão controlado ainda, e aí a flexibilização ajudou a subir. As pessoas começam a sair, aglomerar, fazer festa, não usar máscara. Tudo isso começa a propiciar eventos super propagadores, elevando os casos, e isso se reflete nas hospitalizações.”

O pesquisador da Fiocruz Marcelo Gomes, que atua no projeto Infogripe, também vê uma clara interrupção de queda e tendência da alta nos casos de coronavírus no País. Segundo ele, uma das lições que fica da situação dos Estados Unidos, Europa, e possivelmente, do Brasil, é que a queda não deveria ser encarada como algo permanente e irreversível.

Ranzani, que vive em Barcelona e acompanha de perto a situação da Europa, vai na mesma linha: “não adianta ignorar o vírus porque ele volta, e vimos isso aqui também”. E essa não é a única coisa que podemos aprender com a situação na Europa: “em alguns locais, como Barcelona e Madri, com as primeiras medidas já houve um controle claro da pandemia. Sei que é difícil, e, realmente, todo mundo está cansado. Mas não tem uma solução mágica”.

Paulo Lotufo foi uma voz incansável no alerta de que não existe a chamada “imunidade coletiva” sem que exista uma vacina. Agora, ele testemunha a interrupção na queda dos casos avaliando que, principalmente em São Paulo, o controle com distanciamento social foi forte, mas o País chegou a um limite. Um dos motivos foi a redução do auxílio emergencial. Outro foi a pressão política, em muitos lugares, pela reabertura total. “Muitos locais no País não acreditaram na força do vírus”, diz ele, lembrando o caso emblemático de Florianópolis, que começou bem e depois sofreu uma forte pressão do setor econômico. “Nunca me esqueço daquela cena da reabertura do shopping em Blumenau, ainda em abril, com o saxofone tocando”, relembra Lotufo, ao destacar que também estamos com prioridades erradas: “em uma família, a mãe já pode fazer a unha no salão, o pai já frequenta a academia, mas o filho ainda assiste à aula no Zoom [aplicativo para reuniões online]”.

Como sabemos que a pandemia está em crescimento: “A senhora E. vai ao shopping”
Se não há dados diretos dizendo que há crescimento de novos casos confirmados e óbitos por covid-19, como podemos falar em “segunda onda”, “repique”, “arremetida”? Uma pequena alegoria ajuda a explicar. Imagine que a epidemia de coronavírus é uma pessoa, a senhora E., passeando por um shopping center de vários andares. Não temos acesso direto a ela, mas queremos saber se, neste momento, ela está subindo, descendo, ou ficando no mesmo lugar. Algumas informações poderiam nos ajudar nessa previsão. Duas delas especialmente úteis: um relato de como E. vem se comportando até agora, e uma descrição de seus movimentos no exato momento em que tentamos predizer os passos seguintes.

O relato do passado que temos é bem indireto: quem nos informa não viu com os próprios olhos o que E. andou fazendo – ouviu de outros. Alguma coisa pode ter ficado de fora. Mas com o depoimento de Fulano, fazendo aquela filtragem, dá para ter uma boa noção do comportamento de E. Este é o Sistema InfoGripe, que já acusa a subida de casos da doença no País. O Infogripe faz o monitoramento dos registros de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG (pessoas com sintomas respiratórios internadas e/ou que morreram no Brasil), faz correções, trata estes dados e nos dá bons indicativos de como estão evoluindo os número da covid-19 no País.

Casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave por 100 mil habitantes, por semana epidemiológica, na cidade de São Paulo

Casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave por 100 mil habitantes, por semana epidemiológica, na cidade de Florianópolis

“Recebemos estes dados semanalmente das secretarias municipais, fazemos correções; aplicamos filtros de sintomas, vendo o que, de fato, atende à definição de ‘caso’. E analisamos também quais os vírus identificados, quando há teste laboratorial”, explica Marcelo Gomes, pesquisador em Saúde Pública da Fiocruz. Pelo que diz Marcelo, desde outubro os dados já indicavam a senhora E. parando de descer a escada, e virando lentamente no sentido da escada de subida.

“Até o final de outubro observamos uma série de capitais voltando a registrar sinais de crescimento; algumas delas há várias semanas consecutivas, a maioria delas no Norte e Nordeste, mas também em outras regiões. Florianópolis, por exemplo, está em uma situação preocupante: o gráfico é um ‘V’, não houve sequer o período de estabilidade”, diz Marcelo. Na cidade de São Paulo, houve interrupção de uma queda contínua que se via no município, com indícios de reversão para alta.

Voltando à alegoria, nosso problema maior é a falta de um relato mais imediato sobre os movimentos da senhora E. Nossos informante, Fulano, sumiu do mapa. Ou seja, pararam de chegar os dados que alimentam o InfoGripe, sem explicações muito claras – o governo federal menciona que um “ataque “hacker” aos seus sistemas teria atrapalhado. “A última atualização que tivemos foi no dia 2 de novembro, então a última análise completa que conseguimos fazer foi da semana epidemiológica 44, que se encerrou 31 de outubro”, lamenta Marcelo Gomes.

Mas ainda sobraram Beltrano e Cicrano, outras fontes indiretas de dados que trazem um quadro do momento atual: eles acabaram de ver a senhora E. já começando a subir os degraus da escada na cidade de São Paulo, ou seja, o número de internações nos hospitais deste município está crescendo de maneira notável.

Domingos Alves, professor da FMRP, lidera o projeto Covid-19 Brasil, que observa a epidemia pelos dados de internações em geral, não apenas por SRAG, de todo o País. Estes números, apesar de menos específicos, não sofreram tanto com o apagão de dados, e olhando para eles Domingos é enfático: as internações têm subido consistentemente, com destaque para a Região Metropolitana de São Paulo. E como saber que não se trata de outro motivo? “Se esse aumento não estiver associado à covid-19, então teremos que dizer que está acontecendo uma epidemia de outra doença no Brasil, o que é improvável”, diz.

Há ainda informações de alta nos casos confirmados de covid-19 ocupando leitos na rede privada. O Hospital Albert Einsten soltou, na última sexta (13), uma nota à imprensa com o alerta, dizendo que entre a quinta, 12, e a sexta, 13, foram registradas 18 novas internações. O número supera a média diária das últimas semanas. Da última semana de setembro ao dia 12 de novembro, a média de internações oscilou entre 50 e 55 pacientes infectados. Na sexta-feira, eram 68 leitos ocupados por casos de covid-19.

Internações novas por dia no estado de São Paulo

Internações por covid-19 no Estado de SP – média movel de 7 dias – Fonte: Fundação Seade

O Sírio-Libanês não emitiu comunicados oficiais, mas profissionais que trabalham no Hospital disseram extra-oficialmente que a internação lotou. “Voltei de férias e estava um caos. Para você ter ideia, tem adulto internado na pediatria, por falta de lugar”, disse um deles.

O mesmo foi relatado por um profissional da saúde do Hospital São Camilo do bairro Pompeia: “Todos os 400 leitos estão ocupados por pacientes com covid. UTI e dois andares cheios”, contou à reportagem do Jornal da USP o profissional, que também preferiu não se identificar.

O professor da FMUSP Paulo Lotufo diz que, ao acompanhar dados de hospitais privados como Einstein e Sírio, é preciso cuidado pois eles recebem pacientes do País todo. Outra coisa: “uma possibilidade seria se tratar de um hotspot, um ou dois eventos de super propagação como, por exemplo, já houve com festa de casamento e até chá de bebê. Para saber isso, os hospitais teriam que divulgar dados mais detalhados do perfil dos internados, mas eles não fazem isso”, diz Lotufo.

Só que, durante o último final de semana, a alta nas internações por coronavírus já começou a aparecer também nos sistemas públicos: a própria Fundação Seade, ligada ao Estado de São Paulo, exibiu em seu site números que indicavam isso. “Pela primeira vez desde 15 de outubro, temos mais de 1000 novas internações na média móvel de sete dias no estado de SP. Na grande SP, temos média móvel de sete dias de 605 novas internações. Primeira vez com mais de 600 desde 23 de setembro, há quase dois meses”, apontou já na sexta-feira (13), em seu perfil no Twitter, o médico Márcio Bittencourt, que tem acompanhado e analisado dados da epidemia.

Nesta segunda-feira (16), o governo do Estado, que negava alta nos dados oficiais até sexta-feira, também mudou de discurso, citando indícios de crescimento.  

Foto destacada: Arte Moisés Dorado sobre fotos Agência Brasil e Freepik