Há pouco mais de quatro décadas, ocorria algo inédito na história da humanidade: uma doença infecciosa humana deixava de circular no mundo. No ano de 1980, a varíola humana era considerada erradicada.
Foi uma das doenças mais devastadoras que já existiram. Quase uma em cada três pessoas contaminadas com a varíola morria. Só no século 20, ela matou estimadas 300 milhões de pessoas no mundo – ou seja, 4 milhões por ano.
Agora, esse caminho entre a devastação e a erradicação traz ensinamentos no momento em que um vírus da mesma família, o da varíola dos macacos, avança de forma incomum por países de todos os continentes, em um processo que ainda está sendo compreendido pelos cientistas.
E, no Brasil, que foi um dos últimos países do mundo a eliminar a varíola humana, nos anos 1970, o combate à doença criou as bases do programa nacional de vacinação que conhecemos hoje, explica Tania Maria Fernandes, professora de pós-graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Marquinha no braço até 1971
Aqui, os últimos casos da varíola humana foram registrados em 1971, na região norte da cidade do Rio de Janeiro.
Já eram naquele momento casos isolados da doença, porque desde a década anterior o país vinha promovendo campanhas em massa de vacinação.
Segundo Tania Fernandes, a vacinação abrangia inicialmente desde crianças a partir de seis anos até adultos. Depois, passou-se a vacinar também bebês com menos de um ano.
Quem nasceu até 1971 – último ano da vacinação no país – possivelmente tem um certificado de vacinação da época ou uma marquinha no braço ou na perna esquerda. Isso é importante porque esse grupo demográfico talvez ainda tenha algum tipo de imunidade que valha agora contra a varíola dos macacos (mais detalhes sobre a doença abaixo).
Na época, eram realizadas grandes festas populares em praças de cidades do país para atrair público e imunizar quem quer que aparecesse, diz Fernandes. Havia também vacinação em postos de saúde e campanhas em escolas para imunizar crianças.
“Todo mundo, de zero a cem anos, era vacinado”, detalha a historiadora.
O Brasil criou em 1962 um órgão público federal voltado especificamente para o controle da varíola, batizado quatro anos depois de Campanha de Erradicação da Varíola (CEV) e encarregado de centralizar as ações contra a doença e monitorar seu avanço – como parte de uma iniciativa global da Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a varíola.
“No período de 1966 a 1971, a CEV coordenou a organização e execução de campanhas de vacinação em massa em todos os municípios brasileiros e cooperou com as secretarias estaduais de saúde na estruturação de unidades de vigilância epidemiológica”, segundo o acervo histórico da Fiocruz.
Essa vigilância tinha de notificar e investigar casos suspeitos de varíola em todo o país e rastrear eventuais cadeias de contágio. A partir disso, fazia-se a técnica chamada de vacinação de bloqueio: as pessoas próximas ao paciente infectado eram imunizadas para interromper a cadeia de transmissão.
O comprovante de vacinação também passou a ser exigido na matrícula de crianças na escola, explica Fernandes.
“Essas lógicas é que possibilitaram criar o Programa Nacional de Imunização (PNI)”, que perdura até hoje no Sistema Único de Saúde brasileiro, afirma Fernandes.
“O mesmo modelo foi daí aplicado contra o sarampo, e criou-se o programa nacional de vigilância epidemiológica, que centraliza a notificação de doenças de notificação compulsória – as doenças são notificadas e catalogadas e por isso temos acesso a números de casos, vacinação e mortes” de tantas doenças no Brasil, ela agrega.
Esse conjunto de fatores fez os casos de varíola chegarem a zero no Brasil ainda em 1971. Dois anos depois, o Brasil foi certificado pela OMS como livre da doença.
Feito isso, detalha Tania Fernandes, o Brasil acabou exportando profissionais que haviam participado da campanha de vacinação brasileira para implementar programas parecidos em países que ainda lutavam contra a varíola humana na Ásia e na África, como Bangladesh, Etiópia e Somália.
A erradicação no mundo
O último caso conhecido de varíola no mundo foi registrado na própria Somália, em 1977. Três anos depois, a OMS decretou a doença erradicada – um caso único até hoje na história mundial.
“É a primeira e única doença humana erradicada em uma escala global, graças à cooperação de países”, diz a OMS. “Esse continua sendo um dos mais notáveis e profundos sucessos de saúde pública da história.”
Esse sucesso não é fácil de ser replicável em outras epidemias – por exemplo, a de covid-19 – porque as doenças têm características muito diferentes entre si, explica Tania Fernandes.
A “vantagem” do combate à varíola (e, agora, à varíola dos macacos) é que os pacientes são sintomáticos – apresentam lesões e bolhas na pele bastante particulares, que facilitam a identificação da doença.
Além disso, os vírus da família pox, à qual pertencem a varíola humana e a dos macacos, são considerados estáveis, o que significa que não passam por muitas mutações. Por isso, a imunização costuma ser de longo prazo para quem foi contaminado ou vacinado.
Já o Sars-CoV-2, vírus da covid-19, é bastante diferente: muitas vezes é transmitido de forma assintomática, então passa despercebido em muita gente.
E é um vírus de molécula de RNA, que costuma sofrer muitas mutações – e algumas delas podem driblar a imunização do corpo humano e, em alguns casos, a das vacinas.
Então, assim como o sarampo, por exemplo, a covid-19 é mais difícil de ser completamente erradicada – e as estratégias de saúde pública para essas e outras doenças acabam servindo mais para o controle do que para a erradicação plena.
Da Revolta da Vacina à varíola dos macacos
Vale destacar que a história da varíola é muito antiga – o que contamos acima foram apenas seus capítulos finais.
A OMS estima que o vírus tenha mais de 3 mil anos de existência, e sua vacina foi criada em 1796 pelo médico inglês Edward Jenner.
Os surtos, porém, continuaram ao longo do século 19 e 20.
No Brasil, um marco histórico foi a Revolta da Vacina, em 1904, quando o país vivia um surto particularmente virulento da doença. Só no Rio de Janeiro, capital do país, 3,5 mil pessoas morreriam da doença naquele ano, segundo os arquivos da Fiocruz.
A vacina de Jenner já existia por aqui, mas sua obrigatoriedade não era implementada com rigor. Até que Oswaldo Cruz propôs encaminhar ao Congresso um projeto de lei que reforçasse a campanha obrigatória.
Isso gerou uma reação forte entre diversos setores da sociedade – entre outros motivos, por medo (infundado) de que a vacina propagasse a doença, e pelo incômodo social com o fato de que mulheres casadas mostrassem o braço ou a perna em público para serem vacinadas.
Em novembro de 1904, milhares de pessoas saíram às ruas do Rio para protestar, em uma insurreição que acabou tentando derrubar o próprio governo federal e que foi reprimida com violência.
Nas décadas seguintes, a vacinação avançou com altos e baixos no Brasil e no mundo, até a campanha global bem-sucedida ocorrer nos anos 1960.
Depois da erradicação mundial, o vírus da varíola humana ainda foi armazenado em laboratórios – e sempre circulou o medo de que ele pudesse ser usado como arma biológica contra populações mais jovens, que não estavam mais sendo vacinadas.
Por isso, a OMS e alguns países mantiveram estoques da vacina de primeira geração contra a varíola humana. E agora, diante do recente avanço da varíola dos macacos – que até este ano raramente era vista fora de países da África Ocidental e Central – fábricas de imunizantes já estão sendo acionadas para produzir vacinas para esses dois tipos de vírus.
A vacina da varíola humana é considerada de alta eficiência – 85% – contra a varíola dos macacos justamente porque os vírus são parecidos e estáveis, com poucas chances de mutação.
Outro ponto importante é que a varíola dos macacos é considerada uma doença muito mais branda do que a varíola humana. Sua taxa de mortalidade é estimada entre 1% e 10%, a depender da cepa do vírus e do tipo de paciente (crianças menores e com o sistema imunológico comprometido estão sob risco maior), contra uma mortalidade historicamente de 30% da varíola humana.
“O vírus da varíola foi muito perigoso, matou muito, (…) e era muito fácil de se contaminar”, afirma Fernandes.
Mas, com toda a devastação que ele provocou, seu controle acabou trazendo um aprendizado útil até hoje diante da varíola dos macacos: já conhecemos mais sobre as características da doença e do vírus que a causa, e também criamos estruturas mais robustas para enfrentá-lo, com vacinação e monitoramento de casos, no mundo e no Brasil.
“Com certeza o processo de erradicação da varíola e depois (de combate ao) sarampo deu corpo aos sistemas de notificação e controle das doenças e ao programa de imunização no Brasil”, diz Tania Fernandes.
Além disso, “havia uma vacina de eficácia muito grande, obrigatória, que teve uma aceitação razoável no Brasil. É importante registrar isso: o país tem (até hoje) uma cultura de vacinação muito séria”, afirma a historiadora.