Novo método identifica origem alimentar de surtos por vírus que causa gastroenterites

 No início do ano, um surto de gastroenterites em um cruzeiro de luxo, causado por um norovírus, ganhou destaque no noticiário. Apesar de ser pouco conhecido do público, o vírus transmitido por água e alimentos contaminados é um importante causador de gastroenterites não bacterianas no Brasil. Pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) acabam de desenvolver um método inédito para diagnosticar sua presença em alimentos – por enquanto, em verduras e queijo artesanal. A técnica poderá ser importante para o desenvolvimento de políticas de vigilância sanitária para casos de contaminação por vírus, ainda inexistentes no país.

A pesquisadora Marize Miagostovich, do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC, responsável pela pesquisa, explica que os norovírus estão muito associados a surtos em locais confinados ou de contato próximo, numa mesma família, em navios, asilos e ambientes hospitalares, por exemplo. “A transmissão de pessoa para pessoa ocorre com facilidade e, diferentemente de outros vírus causadores de gastroenterites, o norovírus afeta com frequência indivíduos adultos, o que facilita a ocorrência desse tipo de surto”, afirma.

Para o trabalho de prevenção e controle da doença, segundo Marize, é importante determinar a origem da contaminação. “Até agora eram raros e de difícil padronização os testes capazes de indicar a contaminação de alimentos por vírus”, explica a pesquisadora. “O novo procedimento já se mostrou eficaz na detecção do norovírus em amostras de alface e de queijo artesanal tipo Minas”, detalha. A técnica é derivada do método utilizado no laboratório para detecção do norovírus e de outros vírus de veiculação hídrica, como o da hepatite A, em amostras de água suspeitas de contaminação.

Testes baseados no ácido nucleico viral

Para chegar ao novo método, os pesquisadores inocularam norovírus obtidos a partir de amostras fecais infectadas, em folhas de alface e na superfície de amostras de queijo, alimentos que podem ser contaminados facilmente durante sua manipulação. “Uma parceria com o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz) permitiu o processamento das amostras em um aparelho chamado stomacher, que simula a digestão humana”, conta Marize. “Em seguida, a solução passou por processos de filtração e de concentração viral, antes de ser analisada por metodologias moleculares, que até o momento constituem a única maneira de se detectar a presença dos vírus em alimentos”.

O novo procedimento teve origem no trabalho já adotado no IOC para a análise de amostras de água suspeitas de contaminação. Referência regional para o diagnóstico de rotavírus A, o Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do Instituto aprimorou, nos últimos cinco anos, um método originalmente descrito por pesquisadores japoneses para verificar a presença dos principais vírus de veiculação hídrica. “Adaptamos o método para identificar a contaminação de alimentos e escolhemos como primeiros alvos folhas verdes e laticínios, por fazerem parte da dieta do brasileiro”, conta a pesquisadora.

Marize aponta as vantagens do método em comparação a outros semelhantes. “Utilizamos substâncias inorgânicas, como ácidos, na etapa de reconcentração do vírus, o que evita que os resultados dos testes moleculares sejam mascarados, como acontece em outros métodos”, explica. “Para a análise de amostras de água o teste também é muito prático, pois são necessárias amostras de apenas 2 litros, enquanto outros métodos necessitam de até 100 litros”.

Desafio para a ciência e a saúde pública

Para Marize, esse pode ser o primeiro passo para um trabalho de monitoramento e controle sanitário para vírus. “Não existe legislação específica para esse fim, as metodologias necessárias ainda estão sendo desenvolvidas”, acredita. “O objetivo também é diminuir os custos desses processos que, por serem baseados em biologia molecular, ainda são caros e não podem ser realizados nos Laboratórios Centrais de Saúde Pública, por exemplo”.

Além de importante para saúde pública, o desenvolvimento de métodos como esse pode ter implicações econômicas. “As legislações internacionais estão sendo cada vez mais rígidas para o controle microbiológico e a investigação de vírus, particularmente os gastroentéricos, já estão sendo exigidas para a entrada de alimentos em diversos países”, explica a pesquisadora.

Para os padrões da ciência, a descoberta dos norovírus é recente. Embora os pesquisadores acreditem que eles sempre estiveram presentes no ambiente e suspeitem que estão associados a surtos de gastroenterite antes inexplicáveis, sua descrição ocorreu apenas na década de 1970. “Ainda conhecemos pouco sobre a dezena de subtipos existentes de norovírus. Não sabemos como ocorre a replicação no interior das células e não conseguimos estabelecer modelos animais para entender melhor a patogênese da doença”, afirma Marize. “Sua presença só pôde ser constatada com o desenvolvimento de técnicas moleculares de amplificação genômica, que ainda são caras e não acessíveis a qualquer laboratório público do país, por exemplo”.

Como Laboratório de Referência Regional para o diagnóstico de rotavírus A, o Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC já faz, desde 2005, a análise de amostras de água suspeitas de contaminação, em casos de surtos de gastroenterites não bacterianas. “Temos encontrado um percentual muito grande de norovírus, em especial nos surtos com casos em adultos”, afirma Marize.

Gastroentrites virais

A gastroenterite viral é transmitida por meio de água contaminada, alimentos manipulados por pessoas infectadas ou contato direto com o material fecal de uma pessoa doente. Existem diversos vírus responsáveis pela etiologia das gastroenterites, com destaque para rotavírus A, norovírus, adenovírus entéricos e astrovírus. Os sintomas mais comuns são diarréia, vômito, febre e dores abdominais e de cabeça.  Existe vacina apenas contra o rotavírus A e não há tratamento especifico para a doença: apenas os sintomas são combatidos.  A recomendação central é evitar a desidratação e procurar auxílio médico. A gravidade pode variar de pessoa para pessoa, mas, em geral, os sintomas costumam desaparecer depois de dois ou três dias.

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