Rui Sintra, da Assessoria de Comunicação do IFSC
Uma molécula localizada no sistema do Plasmodium falciparum — principal parasita causador da Malária — pode alertar esse organismo de possíveis perigos. Aliás, quando tem sua atividade interrompida, ela pode causar a morte do parasita. Esses fatos, que podem ser eventualmente considerados algumas das “chaves” da descoberta do combate à Malária, foram observados por pesquisadores do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar-CEPID) do Instituto de Física de São Carlos (IFSC), por meio de um estudo desenvolvido em parceria com especialistas do Instituto de Biociências (IB), ambos da USP. O artigo referente às descobertas foi publicado em fevereiro último na Scientific Reports, da Nature. O CIBFar é um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Responsável por aproximadamente 600 mil mortes por ano, onde crianças com menos de cinco anos representam aproximadamente 78% desse índice, a Malária é uma doença tropical infecciosa, transmitida ao ser humano através da picada da fêmea do mosquito Anopheles. Acredita-se que uma pessoa morre de Malária, no mundo, a cada minuto. Além disso, estima-se que três bilhões de pessoas correm o risco de serem acometidas pela doença, que pode causar calafrios, febre alta, dores de cabeça e musculares, delírios, sonolência, vômitos, entre outros sintomas. No Brasil, o parasita mais comum que causa a doença é o Plasmodium vivax. Ele dificilmente leva o paciente à morte, mas causa grande morbidade. O Plasmodium falciparum, acima citado, é o mais temido, em razão de ser o principal causador de mortes por Malária no mundo.
Quando o P. falciparum invade a corrente sanguínea, ele se aloja nos glóbulos vermelhos (hemácias), sendo que para obter energia suficiente e sobreviver no organismo humano, ele degrada as hemoglobinas, que são as principais proteínas presentes nas hemácias e que são responsáveis pela coloração vermelha do sangue.
Apesar de parecer simples, esse processo de obtenção de energia é complexo, já que, dentro dessas proteínas, existe uma molécula chamada “heme” que é liberada quando o parasita degrada a hemoglobina, ficando solúvel nos glóbulos vermelhos e tornando-se tóxica ao Plasmodium. Contudo, ao longo de sua evolução, o P. falciparum “aprendeu” a se proteger dessa molécula tóxica, polimerizando-a e precipitando-a. “O parasita não sabe lidar com o heme; então, ele deixa essa molécula ‘de lado’. Ela incomoda o parasita, mas deixa de ser tóxica para ele”, explica o professor Rafael Guido, docente do Grupo de Cristalografia do IFSC que fez parte deste trabalho, cuja autoria principal foi dividida entre os pesquisadores Fernando Maluf, do IFSC, e Eduardo Alves, do IB.
“Detoxificação”
Essa foi apenas uma das maneiras que o P. falciparum encontrou ao longo dos anos para se esquivar do heme e sobreviver no hospedeiro. Uma outra alternativa usada pelo parasita é conhecida como “detoxificação”, processo em que o P.falciparum transforma o grupo heme em uma molécula chamada biliverdina, através da heme oxigenase, uma molécula presente tanto no organismo humano, como no sistema do parasita, que oxida o grupo heme.
Após 72 dentro de uma hemoglobina, o parasita se multiplica tanto que provoca a explosão da célula e a liberação dos parasitas pelo organismo humano, o que pode causar complicações ao paciente, como, por exemplo, hemorragia (perda súbita de sangue que pode ocasionar a morte).
Durante alguns estudos feitos em laboratório, a professora Célia Garcia, pesquisadora do IB e autora correspondente do trabalho, observou que o P. falciparum produz a biliverdina que, assim como o grupo heme, pode ser tóxica para ele. E, se esse organismo produz a biliverdina, é porque existe alguma enzima em seu sistema que permite fazer isso. “Na literatura, existem muitas discussões a respeito da enzima ser capaz de converter o grupo heme em biliverdina no sistema do parasita. Mas, descobrimos que há biliverdina nesse organismo”, explica Guido, destacando que os pesquisadores chegaram a essa conclusão, porque encontraram biliverdina em glóbulos vermelhos onde o parasita havia se instalado. Nesses glóbulos, não existem enzimas humanas capazes de produzir biliverdina, portanto, nesse caso, ela só pode ter sido produzida pelo parasita.
Nessa etapa do estudo, os pesquisadores nocautearam (termo comum utilizado no meio científico) esse parasita, ou seja, retiraram o gene que codifica para a enzima heme oxigenase, impedindo, assim, a produção de biliverdina. Quando o parasita foi nocauteado, ele morreu. “Ter retirado o gene do parasita foi letal para ele. Isso é super interessante para nós, que queremos desenvolver um fármaco para combater a Malária, porque mostra que se impedirmos a produção ou a ação da heme oxigenase [aquela molécula que oxida o grupo heme], conseguiremos combater o parasita”, diz Guido.
Além disso, foi observado que a biliverdina modifica o ciclo de vida do parasita, impedindo o desenvolvimento e amadurecimento do P. falciparum. De acordo com o docente do IFSC, se ela é tão importante, existe alguma outra proteína que se liga à biliverdina. Mas, então, qual seria essa proteína? Baseados nessa questão, os pesquisadores desenvolveram outra série de ensaios em laboratório, na qual observaram que a enzima enolase se une à biliverdina, sendo uma enzima importante para o parasita. Essa descoberta surpreendeu os pesquisadores, já que a enolase é uma enzima que fica localizada em outra via do organismo do Plasmodium e que, em princípio, não deveria se unir ao grupo heme.
Após a descoberta, a enolase foi clonada, expressada e purificada — processos comumente realizados para se estudar uma enzima. A partir desses procedimentos, os pesquisadores conseguiram caracterizar a interação da biliverdina com a enzima em questão e concluíram que a biliverdina se liga à enolase para alertar o parasita de algum perigo. “A biliverdina funcionaria como uma molécula de comunicação e a enolase como o sensor que detecta a biliverdina. Então, se há algo errado que pode prejudicar o parasita, ele fica sabendo e se protege, parando a taxa de multiplicação e se mantendo em formas mais resistentes”, revela Guido.
Após essa série de estudos que revelaram tais descobertas “inesperadas e curiosas, que abrem uma fronteira para muitos outros trabalhos voltados ao combate da Malária”, os pesquisadores estão investigando a enolase, com o intuito de buscar inibidores que possam impedir a interação da biliverdina com essa enzima, bem como a sua função natural, tornando o parasita um alvo mais fácil de ser combatido futuramente. Tal fase dessa pesquisa deverá ser o foco do próximo artigo assinado por Guido e seus colegas pesquisadores.
Em busca de fármacos
Apesar de ter obtido tais resultados, Guido esclarece que novos fármacos para a Malária deverão se tornar realidade somente daqui a uma ou duas décadas. Contudo, o docente destaca outra iniciativa do IFSC, que visa o desenvolvimento de novos tratamentos para a Malária: Em breve, o Instituto deverá estabelecer, por meio dos professores Rafael Guido e Glaucius Oliva, uma parceria com a organização não governamental Medicines for Malaria Venture (Genebra; Suíça). O objetivo dessa colaboração será o desenvolvimento de novos candidatos a fármacos voltados ao combate da Malária.
Fotos: Divulgação / Scientists Against Malaria e IFSC
Mais informações: (16) 3373-9770