Há três décadas seria impensável que numa favela, 68% das mulheres estivessem com sobrepeso e 28,4% obesas. Esta é a realidade atual de uma comunidade com renda per capita mensal de R$78,42, atendida por um centro comunitário mantido pelo Colégio São Luís, na rodovia Anhanguera, em São Paulo.
“O baixo nível socioeconômico e principalmente a escolaridade provavelmente determinam hábitos alimentares e estilo de vida que desencadeiam a obesidade”, constata a médica Alessandra Carvalho Goulart. Em sua tese, apresentada na Faculdade de Medicina (FM) da USP, a pesquisadora acompanhou por três anos 116 mulheres moradoras de três favelas (Paraíso, Morro Doce e Polvilho), situadas nos bairros de Perus, Jardim Jaraguá e Jardim Anhanguera, além de uma pequena área da região metropolitana de São Paulo, em Cajamar. Elas tinham, em média, 40 anos.
Alessandra aplicou um questionário padrão para rastrear qualidade de vida (reconhecido internacionalmente) e de dados sócio-demográficos, que possibilitaram um levantamento sobre doenças como hipertensão arterial e diabete melito, hábitos de vida relacionados à nutrição, atividade física e questões referentes ao estado mental.
Com estes dados, a pesquisadora traçou o perfil das mulheres e conseguiu apontar as causas do excesso de peso. Concluiu que o consumo alimentar está dentro dos padrões propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os itens mais consumidos foram: arroz, feijão, café, açúcar e pão (além da cesta básica composta principalmente por carboidratos e produtos industrializados). Frutas e vegetais em geral não fazem parte do cardápio cotidiano, por serem mais caros e perecíveis, e por “não renderem muito”.
Alguns fatores detectados, no entanto, contribuem muito para a obesidade. A taxa média de fecundidade é de 3,5 filhos por mulher. “A cada gravidez vai ficando mais difícil perder os quilos ganhos e a prática de atividades físicas é quase nula”, conta a pesquisadora. Segundo ela, 87% das entrevistadas são completamente sedentárias no lazer e, as que se exercitam, têm como atividade os afazeres domésticos. Outro ponto é o fato de quase 80% delas serem analfabetas funcionais. “Embora alfabetizadas, são incapazes de estabelecer relações de sentido na leitura, o que cria um obstáculo para receberem informação sobre saúde.”. A relação entre educação e fecundidade se observa pelo fato de mulheres com mais de quatro anos de estudo regular tinham menos de 3 filhos.
A médica elabora ainda outra explicação para a tendência dessas mulheres a engordar. Analisando o histórico de vida destas pessoas, que sempre foram pobres, e percebendo que suas estaturas médias é baixa (1,56m), Alessandra trabalha com a hipótese de terem sofrido desnutrição ainda dentro do útero. Os bebês que passam por isso tornam-se pessoas de baixa estatura e têm seu metabolismo alterado em função da restrição alimentar. Podem ser mais sensíveis a dietas ricas em gordura, devido a um menor poder de oxidação de lipídios e seu gasto energético é abaixo da média.
Contradições Sobre a contradição entre a falta de recursos financeiros e a obesidade, Alessandra diz que, em um grande centro urbano como São Paulo, elas acabam acompanhando as mudanças de hábitos, mesmo que estejam excluídas dos círculos de consumo, até porque acontecem muitas “trocas não-monetárias” na cidade, como doações de igrejas, instituições, pedintes nas casas e faróis.
“Esse paradoxo não acontece em lugares pobres como o sertão nordestino, onde os índices de desnutrição ainda são altos e a obesidade um problema distante”, afirma a pesquisadora. Na opinião de Alessandra, programas governamentais como o Fome Zero insistem em ignorar que o “Brasil é um mosaico de realidades”. Para ela, as políticas devem ser regionalizados. No Sudeste, a pesquisadora acredita que a palavra de ordem para tratar a questão nutricional é a educação.
O trabalho de Alessandra acaba de ser apresentado no Congresso Internacional de Epidemiologia de Toronto (Canadá)