Em entrevista para a Agência Fiocruz de Notícias (AFN), o coordenador-executivo do Programa Institucional Álcool, Crack e Outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz, Francisco Netto, apresentou um panorama geral da questão da redução de danos no Brasil e na América Latina. Ele analisou também a situação que tem se desenrolado na Cracolândia, em São Paulo. De acordo com Netto, não há solução mágica para o uso problemático de drogas: a saída é a garantia de direitos, o acesso ao cuidado e a inserção social.
A conversa aconteceu durante o Seminário Internacional: Cenários da Redução de Danos da América Latina, que foi realizado nos dias 29 e 30 de maio, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro. O evento foi dedicado à troca de experiências e reflexões sobre a redução de riscos e danos associados ao uso problemático de drogas. No primeiro dia de encontro foram debatidas as novas práticas e o contexto histórico da redução de danos no continente. Ao final do seminário, que contou com a presença de especialistas de diversos países da América Latina, foi divulgada a Carta de Manguinhos, abordando a situação atual das políticas de redução de danos e suas interfaces na América Latina.
Como o Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas, da Fiocruz, enxerga a questão das drogas atualmente?
Francisco Netto: A realidade global, e também nacional, é que há uma expressiva prevalência do uso de drogas lícitas e ilícitas. Pessoas usam substâncias que alteram a consciência. Isso é uma realidade e não tem como fugir dela. Não é factível que todas as pessoas deixem de usar substâncias. Então um dos objetivos do programa é apoiar ações que reduzam os danos associados ao uso, ou seja, que aquelas pessoas que não querem ou podem parar de usar estejam expostas a menos riscos e danos decorrentes do uso prejudicial.
Como os países com participantes no Seminário Internacional lidam com o problema?
Francisco Netto: Em todos o uso de álcool é a maior questão. A situação do uso de cocaína é importante, particularmente o uso de cocaína fumável por pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, que no Brasil é majoritariamente o crack. Há diferenças entre os países, mas todos lidam de alguma forma com esta questão. A verdade é que nem eles nem nenhum estado ou cidade brasileira vive uma situação parecida com o que acontece em São Paulo, onde existe uma concentração grande em um único território, a área central cidade, no bairro da Luz. Há uma maior dispersão das cenas de uso, em diferentes graus. O problema de uso de drogas é complexo e a solução nunca pode ser dada de forma simples. Não existe uma solução mágica para o problema. Nenhum país conseguiu ter uma solução simples. O caminho que a gente acredita e defende no Programa Institucional Álcool, Crack e Outras Drogas e que compartilhamos com outros profissionais de outros países é a lógica do cuidado e da inserção social. Pensamos o cuidado entendendo que algumas das pessoas não vão conseguir parar de usar drogas e vão necessitar de cuidados e estratégias de inserção e proteção, porque o uso de substâncias psicoativas pode implicar em riscos e danos àquela pessoa.
Qual país teve pelo menos uma redução mínima dos danos?
Francisco Netto: Os lugares onde houve uma redução de danos a relação do uso de crack foi em São Paulo e Recife, com o Programa De Braços Abertos e Atitude, respectivamente. Em São Paulo, na gestão anterior, havia um programa que pensava em trazer moradia, geração de renda e outros tipos de elementos de inserção social para os usuários. Há pesquisas que indicam que houve uma redução significativa no uso de substâncias durante o programa, assim como em Recife com o Atitude. Em contrapartida, os meios que têm sido usados atualmente em São Paulo são completamente ineficazes no ponto de vista da saúde, de tentar evitar o uso com repressão e internações compulsórias em massa, chegando ao ponto de derrubar muros com pessoas ainda dentro das casas, sendo atingidas por escombros. Havia um caminho e um avanço pela lógica da inserção social, da garantia de moradia e da garantia dos direitos dessas pessoas.
Além do programa feito na gestão anterior em São Paulo e em Recife, existe, em algum outro lugar, um programa que deu certo?
Francisco Netto: Os países europeus e os países norte-americanos têm experiências bem interessantes. Há uma diferença porque lá a substância que é mais usada e que gera um impacto maior à saúde é a heroína, que não está significativamente presente aqui no Brasil e na maioria dos países da América Latina, exceto a Colômbia e México. O caminho construído nos países europeus, assim como no Canadá, segue a linha do que nós acreditamos. Eles formularam que, para as pessoas que não conseguem parar de usar, a melhor forma para poder reduzir os danos do uso é garantir que o Estado possa acompanhar as pessoas. Ou seja, há salas de uso seguro, que o Estado disponibiliza para as pessoas, o que garante que não haja overdoses e transmissão de doenças por seringas contaminadas. Isso garante também que haja uma diminuição muito grande da transmissão de doenças e, na verdade, é esse o caminho que acreditamos ser bom. Obviamente, entendemos que quando uma pessoa quer parar de usar uma droga é necessário – e a gente tem que ter sempre em mente isso -, diversos procedimentos e instrumentos que ajudem o indivíduo a parar de usar a droga.
Vimos a Cracolândia, uma área degradada, que agora sofre de interesses da especulação imobiliária. E o problema se espalhou para 23 pontos. Aqui no Rio de Janeiro também vemos. Qual a solução?
Francisco Netto: Qualquer um que afirmar que existe uma solução simplista não estará falando a verdade. Do nosso ponto de vista, são ações de cuidado e garantia de direitos que devem ser implementadas. De forma mais ampla, devemos reduzir desigualdades e reduzir a vulnerabilidade social dessas pessoas. O que se fez recentemente em São Paulo não vai acabar com a situação no bairro da Luz. Essas pessoas certamente vão se reagrupar – não muito longe de onde estavam. Você pode se preocupar em fechar um quarteirão e logo outra parte próxima dali vai acabar se configurando como novo espaço de uso. Esse tipo de ação só serve para fazer com que certas áreas ganhem valorização imobiliária. Então, não tem uma preocupação com a saúde das pessoas e não tem preocupação com a sociedade. Porque na verdade não se está garantindo que as pessoas em situações de vulnerabilidade estejam melhores. É a partir de um olhar de cuidado, da saúde, que a gente tem que encarar a questão de drogas, não é por meio de repressão nem de uma lógica criminalizante que conseguiremos resolver o problema. Então, temos que entrar com uma lógica de inserção social dessas pessoas, e não de afastar. Não se pode fazer limpeza social que tire as pessoas de nossas vistas, isso definitivamente não resolve em nada o problema.