É grande a quantidade de mitos e também a desinformação associadas ao uso da pílula do dia seguinte entre os adolescentes e até mesmo entre alguns profissionais nas unidades básicas de saúde. Um dos equívocos mais frequentes é de que ela seria abortiva, quando de fato seu papel é impedir ou retardar a liberação do óvulo pelo ovário, impossibilitando a fecundação. Também há um vácuo em relação ao cumprimento das normas sobre quem indica e quem pode fornecer o contraceptivo de emergência. Mesmo que sua venda só devesse ocorrer mediante prescrição médica, sabe-se que no Brasil praticamente tudo o que se pede no balcão da farmácia é vendido sem necessidade de apresentar a receita.
Há uma grande discussão de esclarecimento a ser feita a respeito desse tema, diz Fernando Lefèvre, professor do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, um dos coordenadores de uma pesquisa sobre o uso da pílula. O trabalho, que tem financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e parceria do Ministério da Saúde, procura interpretar e compreender os sentidos atribuídos à pílula do dia seguinte entre os jovens e os profissionais (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, técnicos e outros) que lidam com eles nos postos de saúde.
A partir das conclusões, serão elaborados materiais multimídia para ajudar a esclarecer os adolescentes quanto à prevenção da gravidez e ao uso correto da pílula. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2007 mostram que o número de adolescentes grávidas permanece alto, apesar da queda na taxa de fecundidade em todo o país. Cerca de 20% dos partos realizados no Brasil são de mulheres com menos de 20 anos de idade.
Foram ouvidos 300 jovens de 13 a 19 anos e 11 meses, de ambos os sexos, que procuraram atendimento em unidades básicas de saúde na região sul da cidade de São Paulo, além de 60 profissionais desses postos. Embora o levantamento de dados ainda esteja em andamento, algumas conclusões já podem ser anunciadas. Uma delas é que há muitas diferenças na visão entre meninos e meninas a respeito do uso da pílula. A maioria aprova o uso, mas, de acordo com Lefèvre, os meninos são mais moralistas e reativos quanto a essa opção. Outra conclusão é que os adolescentes defendem a prevenção da gravidez como o melhor caminho embora isso não signifique que eles realmente a pratiquem.
Opções As entrevistas foram baseadas em seis pequenas histórias que apresentavam situações envolvendo o uso da pílula. Numa delas, por exemplo, uma adolescente muito namoradeira vai a um baile funk, bebe um pouco demais e no outro dia nem lembra o que acontecera depois. Resolve então tomar a pílula do dia seguinte para prevenir a gravidez. Em outro dos casos, uma adolescente é estuprada num matagal. As amigas a aconselham a usar a pílula do dia seguinte, mas ela quer muito ter um filho e acaba não tomando. Ao final de cada história, eram feitas as perguntas. Para os meninos: O que você acha desse caso? Para as meninas: O que você faria nessa situação? E, para os profissionais: Que orientação você daria?. A entrevista era encerrada com a pergunta: Para que você acha que serve a pílula do dia seguinte?.
A pesquisa foi testada em grupos de perfil semelhante ao que seria efetivamente entrevistado, e já na fase do pré-teste revelou surpresas. No caso referente ao estupro, por exemplo, os integrantes do grupo quiseram saber se quem o praticou era uma pessoa conhecida ou desconhecida. É um fator de ponderação. Para eles, é relevante o ato de violência mais o fato de não conhecer o possível pai. Se é conhecido, o ato é menos visto como agressivo, explica Lefèvre. A história levada às entrevistas individuais explicitou que o autor da violência era um estranho.
Essa mesma história foi a que suscitou uma das maiores diferenças nas respostas tabuladas até o momento. Enquanto 32,3% das meninas afirmaram que a decisão da personagem de não tomar a pílula era errada porque esse filho seria fruto de um ato de violência, somente 16,9% dos meninos tiveram a mesma opinião. Para apenas 5,17% das meninas a decisão é certa porque é um direito da mãe optar por ter o filho ou não, enquanto 30,9% dos meninos dizem o mesmo. A gravidez ocorre no corpo da mulher, o que faz com que ela responda como primeira interessada na questão, diz Ana Maria Cavalcante Lefèvre, mestre e doutora pela FSP e pesquisadora do Instituto de Pesquisa do Sujeito Coletivo, que também participa do trabalho.
Na história sobre o baile funk, o aspecto do moralismo também aparece. Muitas das respostas dos meninos incluíam comentários do tipo quem mandou ela fazer isso?, ou é uma irresponsável (como se houvesse apenas mulheres nessas festas, observa Ana Maria), ou ainda: Ela poderia estar fazendo outra coisa, trabalhando ou ajudando a mãe. O comprometimento do futuro e do projeto de vida, entretanto, é o elemento central da preocupação dos jovens (leia o texto ao lado).
72 horas As meninas demonstraram grande preocupação em se aconselhar com a família, fundamentalmente com as mães, sobre usar ou não a pílula. Mesmo que muitas vezes numa linguagem simples, apareceu um alto grau de reflexão sobre a responsabilidade desse ato, que não é uma decisão qualquer, diz a pesquisadora. A pressão aumenta muito pelo fato de que, para ter eficiência, a pílula deve ser ingerida até 72 horas depois da relação. Ou seja, a decisão entre levar adiante ou não uma possível gravidez, com tudo o que isso implica, tem que ser tomada em no máximo três dias.
De maneira nenhuma estamos fazendo a apologia do uso da pílula, mas é preciso que haja esclarecimento, porque essa é uma política importante, afirma Ana Maria, referindo-se à distribuição e ao acesso. Para o professor Lefèvre, há uma forte tendência de que o recurso, que deve ser usado apenas em situações emergenciais, se transforme em rotina por exemplo, que uma adolescente, por achar que sua vida sexual não é assim tão ativa, tome a pílula sempre que tiver relações sexuais. Além de diminuir a eficácia do comprimido, essa prática pode trazer outros efeitos à saúde.
O uso da pílula do dia seguinte é muito parecido com o jeito com que as pessoas tomam qualquer remédio hoje. Tenho uma dor de cabeça e tomo um medicamento para acabar com aquela dor. Na maioria das vezes não se usa o medicamento de forma preventiva, mas curativa, e com a pílula acaba acontecendo isso, compara Lefèvre.
O software livre a ser preparado para distribuição na rede pública de saúde e apresentação aos jovens deve trazer as histórias com imagens e animação e propor um game que dialogue com os adolescentes sobre suas respostas. Diálogo, aliás, é o que os pesquisadores defendem para todos os lados envolvidos, especialmente trazendo aos jovens informação e subsídio para a prevenção.
Lefèvre e Ana Maria lamentam não ter encontrado receptividade para a pesquisa, nas escolas que procuraram, e sabem que não se pode cobrar dos profissionais de saúde que deixem de atender a fila nos postos para se dedicar com mais intensidade a um trabalho educativo. Cada vez que ocorre uma situação de uso da pílula do dia seguinte com uma adolescente, é porque não houve todo o trabalho anterior de informação e educação, acredita Ana Maria. Existe uma possibilidade muito grande de diálogo com esses meninos e meninas. Eles estão querendo isso.
Comprometer o futuro é a maior preocupação
A presença de mães adolescentes é uma realidade do cotidiano dos jovens entrevistados. Praticamente todos têm casos para contar na família, entre amigos ou na própria vida. É o conhecimento das dificuldades decorrentes de gerar um filho que faz com que a grande preocupação dos entrevistados seja em relação a comprometer o seu projeto de vida e sua carreira. Os jovens sabem que trabalhar e obter o sustento financeiro está difícil; que o rapaz pode ter que pagar pensão e que muitas vezes a menina para de estudar, prejudicando seu futuro.
O elemento decisivo é o projeto de vida, que para eles é mais importante do que qualquer outra coisa. Esse futuro, associado a uma gravidez, é complicado, afirma o professor Fernando Lefèvre. Também foi manifestada preocupação em sobrecarregar os pais com o sustento total ou parcial de uma criança. De acordo com a PNAD 2007, a proporção de mães adolescentes que viviam na casa de suas próprias mães ou avós era de 53,9% (ou quase 515 mil jovens de 15 a 19 anos). Porém, 57,4 mil mães adolescentes eram chefes de família.
Para os pesquisadores, o ideal seria realizar o mesmo trabalho em outros bairros de São Paulo e também em outras cidades do país, para obter os dados de jovens de diferentes perfis e municiar o Ministério da Saúde com mais subsídios para a implantação de políticas públicas voltadas à prevenção da gravidez e ao uso da pílula do dia seguinte para adolescentes