Ministério da Saúde citou Prevent Senior em recomendação de ‘kit covid’

O Ministério da Saúde citou e reproduziu um protocolo da operadora Prevent Senior em parte de suas orientações sobre o uso de medicamentos do chamado “kit covid”.

Notas informativas divulgadas pela pasta entre maio e julho de 2020 mostram que as dosagens de azitromicina para pacientes de covid-19 recomendadas pelo governo eram as mesmas usadas no protocolo da Prevent Senior.

A operadora de saúde é também explicitamente citada como referência em documentos produzidos pela pasta. A ligação entre o estudo que vinha sendo conduzido pela empresa e as ações tomadas pelo ministério são alvo de investigação da CPI da Covid.

O chamado “kit covid” é composto por medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, entre outros.

Estudos científicos como o Recovery Trial, realizado no Reino Unido com 4.500 pacientes concluiu que o uso de hidroxicloroquina e azitromicina não trouxe benefício algum a pacientes de covid-19.

Em março deste ano, um painel de especialistas internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que a hidroxicloroquina não deveria ser usada para prevenir a doença, não reduzia as taxas de infecção e, provavelmente, aumentava os riscos de efeitos adversos.

Apesar da falta de comprovação científica sobre a eficácia desses medicamentos contra a covid-19, a partir de maio de 2020, o Ministério da Saúde passou a editar notas de orientação recomendando a utilização dessas drogas em todas as fases da doença. Elas foram editadas após a queda do então ministro da Saúde Nelson Teich, que era contrário à medida.

Entre maio e julho de 2020, o Ministério da Saúde editou três recomendações orientando o uso dessas medicamentos. Alguns links do Ministério da Saúde que levavam às notas foram tirados do ar, mas a BBC News Brasil conseguiu obter acesso a todas elas, seja por meio de links pouco visíveis no ambiente virtual da pasta ou por meio de respostas enviadas pelo ministério a pedidos de Lei de Acesso a Informação (LAI) e que estão armazenadas nos servidores da Controladoria Geral da União (CGU).

A primeira delas, publicada no dia 20 de maio, e a terceira, citam explicitamente como referência científica o protocolo adotado pela Prevent Senior em suas unidades.

Ambas são assinadas por integrantes e ex-integrantes da pasta. Alguns deles já prestaram depoimento à CPI da Covid como o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde Élcio Franco e a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde, Mayra Pinheiro, que ficou conhecida como “capitã cloroquina”.

Tanto Élcio Franco como Mayra Pinheiro foram procurados pela BBC para posicionamento. Franco não havia se pronunciado até o fechamento desta reportagem. Pinheiro solicitou que as questões fossem enviadas para o Ministério da Saúde, que também não se pronunciou.

O incentivo do governo brasileiro ao uso de medicamentos do “kit covid” é uma das principais linhas de investigação da CPI da Covid no Senado. Os parlamentares querem saber quem foram os responsáveis pela formulação e adoção dessa política.

As suspeitas são de que havia no governo uma espécie de “gabinete paralelo” composto por médicos, empresários e políticos sem vínculo com o Ministério da Saúde e que teriam influenciado o governo a recomendar o kit. Em um release distribuído no dia 18 de junho de 2020, a pasta admitiu que o governo os testes feitos pela Prevent, entre outras operadoras de saúde.

“Além disso, o Ministério da Saúde acompanha pesquisas e ensaios clínicos para estudar a segurança e a eficácia dessas medicações para a Covid-19. Também tem acompanhado seguimentos clínicos, por grandes grupos (Prevent, Unimed e Hap Vida), na qual brasileiros tiveram acesso a essas medicações com boas respostas ao tratamento”, dizia o texto na época.

Nas últimas semanas, o protocolo adotado pela Prevent Senior também passou a ser alvo da comissão depois que um dossiê anônimo foi encaminhado aos parlamentares acusar a empresa de manipular dados de um estudo sobre os efeitos do “kit covid” sobre pacientes.

Entre as acusações estão a omissão de mortes por covid-19, com base em informações noticiadas pela GloboNews. A comissão investiga, agora, se havia alguma conexão entre o protocolo da Prevent Senior e as decisões tomadas pelo Ministério da Saúde.

Dosagem

A comparação com as prescrições recomendadas da Prevent Senior e as notas elaboradas pelo Ministério da Saúde mostra que as doses, duração e frequências para o uso de hidroxicloroquina e azitromicina são exatamente as mesmas para pacientes adultos: 400 mg de hidroxicloroquina de 12 em 12 horas no primeiro dia de tratamento e, do segundo ao quinto dia, 400 mg de hidroxicloroquina de 24 em 24 horas. A prescrição também previa 500 mg de azitromicina a cada 24 horas por cinco dias.

Nos documentos, o Ministério da Saúde usa a nomenclatura “sulfato de hidroxicloroquina”, nome completo da substância, enquanto a Prevent Senior usa apenas o nome pelo qual ela é popularmente conhecida: hidroxicloroquina.

As únicas diferenças entre os dois protocolos são que o da Prevent Senior indicava a utilização de oseltamivir associado à hidroxicloroquina e à azitromicina, enquanto as orientações do ministério não previam essa droga para adultos, apenas para crianças. Além disso, a recomendação do ministério previa que a hidroxicloroquina poderia ser substituída por difosfato de cloroquina.

O uso do protocolo da Prevent Senior pelo Ministério da Saúde foi abordado na sessão da quarta-feira da CPI da Covid. Questionado pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), o diretor-executivo da empresa, Pedro Benedito Batista Júnior, negou que a Prevent Senior tenha participado da elaboração das recomendações feitas pelo Ministério da Saúde.

Procurada, a assessoria de imprensa da Prevent Senior disse que as declarações de Batista Júnior à comissão refletem o posicionamento da empresa sobre o assunto.

“Não houve (tratativas). Eles simplesmente utilizaram um documento interno da Prevent, um documento que é utilizado para orientação médica, para incorporar à normativa do Ministério da Saúde, sem nenhuma anuência ou, então, participação nossa”, disse o executivo em seu depoimento à CPI.

Para infectologista Leonardo Weissmann, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, o governo não foi prudente ao incorporar o protocolo da Prevent Senior na sua recomendação.

“Bastava uma leitura criteriosa do documento para perceber que existiam falhas metodológicas. Era preciso uma avaliação maior das evidências científicas para que a recomendação fosse feita. Não há evidências científicas robustas de que a hidroxicloroquina, com ou sem a azitromicina, sejam benéficas para a COVID-19, nem para a prevenção, nem para o tratamento”, disse Weissmann.

A avaliação da infectologista Raquel Stucchi, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), é de que o governo errou ao recomendar o uso do “kit covid” com base no protocolo da Prevent Senior.

“Esta recomendação do Ministério da Saúde de uso sempre foi muito criticada pelas sociedades médicas. A SBI produziu um documento extenso com toda a justificativa para não recomendar estas drogas. Não é só porque elas são ineficazes, mas porque elas aumentam o risco de reações adversas em que faz uso dessa medicação. Foi um erro do ministério ter feito essa recomendação”, afirma.

A BBC News Brasil enviou questionamentos ao Ministério da Saúde, mas a pasta não enviou respostas até o fechamento desta reportagem.