Uma geração que se define como moderna, descolada e livre de preconceitos pode, ainda, ser conservadora em vários aspectos. Esse comportamento é muito comum entre os frequentadores de uma uma famosa “balada” indie rock (festas que tocam músicas do rock alternativo) que acontece todos os sábados na região do centro de São Paulo. O tema foi objeto de estudo da antropóloga Ane Talita da Silva Rocha em sua dissertação de mestrado na área de antropologia social, realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
O objetivo principal da pesquisa é entender como se dá a construção de sujeitos desejáveis dentro da cena indie rock, ou seja, como é a busca por relações afetivo-sexuais por frequentadores de festas especializadas em tocar músicas do rock alternativo, conhecido por indie rock. Para entender os processos, Ane passou um ano frequentando a casa noturna. Foi discutida também a importância do DJ e das músicas, na construção da identidade do jovem.
A faixa etária dos frequentadores estava entre 18 e 24 anos. É um ambiente muito branco, frequentado por um público da classe média/alta. “Tem um recorte de classes do que é desejável ou não, além de um recorte de raça”, afirma Ane. A maioria dos jovens que frequentam o local está inserida no ensino superior, em universidades públicas ou privadas.
Estar inserida em uma local de sociabilidade permitiu à pesquisadora entender como eram avaliados os critérios que tornavam uma pessoa desejável ou não aos olhos de um possível parceiro. É a ideia do “quem fica com quem”, popularmente falando. Além disso, a casa noturna estudada é uma balada mista, ou seja, é frequentada por casais homo e heterossexuais. A pesquisadora tentou, então, entender como se dava a relação entre esses tipos de casais e analisar como era a convivência entre eles no ambiente.
Fora do ambiente, a pesquisadora entrevistou alguns dos jovens, estudou a moda, construção do estilo, a importância da música e as bandas mais recorrentes dentre as setlists. Esses fatores são considerados muito importantes na construção de uma identidade do indie rock.
Valores de uma geração
Apesar de ser uma cena que se considera moderna e livre de preconceitos, esses preconceitos se revelam em forma de deboches, insultos e por meio da autoafirmação (e reafirmação) de suas preferências sexuais, por conta, principalmente, de viverem em uma sociedade heteronormativa. O conservadorismo revela-se em vários momentos e em diversos aspectos. “A moralidade é muito marcada”, segundo a pesquisadora.
A autoafirmação é muito importante: os jovens entrevistados preocupavam-se com a questão de ser hétero mesmo, gay mesmo ou lésbica mesmo. O “mesmo” é importante na reafirmação da identidade sexual. Ela também pode perceber que os discursos homosexuais são recheados de amor “romântico” enquanto os héteros, não. Para os jovens homossexuais da pesquisa, o desejo e o prazer sexual estão intimamente ligados ao amor.
Há uma grande tensão, marcada por valores, posturas, códigos e significados, dentro da busca por parceiros afetivo-sexuais. Por exemplo, os homens estariam numa corda bamba: não podem parecer machões tampouco muito afeminados. O referencial está muitas vezes na música, para serem mais ou menos desejáveis, devem parecer com algum cantor que é um ídolo do público.
Já para as meninas, a única maneira de experimentar a sua própria sexualidade seria por meio do álcool. Caso não estivessem bêbadas, poderiam ser consideradas lésbicas ao “ficarem” com outras garotas, mas a bebida serve como um minimizador neste campo. “As meninas podem experimentar, podem ficar com outras meninas e não necessariamente serem lésbicas, mas ela não está sendo ela mesma. É uma coisa que pode acontecer na balada, mas porque ela está bêbada”, explica um dos entrevistados na pesquisa.
Dentro dessa cena há uma outra contradição. É falado que eles são os guardiões da cultura alternativa, que está “morrendo”, porém o acesso a essa cultura é muito dificultado por esses “defensores”, que tornam a cultura fechada e de difícil acesso por, mesmo que informalmente, estabelecerem paradigmas e padrões. “Que juventude moderna é essa que mantêm os padrões tão engessados?”, questiona a pesquisadora.
A dissertação de mestrado Construindo desejos e diferenças: uma etnografia da cena indie rock paulistana, orientada por Heloisa Buarque de Almeida, é uma contribuição no debate sobre o que é ser jovem atualmente. A pesquisa também discute quais são as moralidades em jogo e se elas contribuem na construção de um Brasil mais igualitário.