Imprensa “construiu” epidemia de febre amarela em 2018

No verão 2007/2008, notícias veiculadas na grande imprensa davam conta de que o Brasil vivia o risco iminente de uma epidemia de febre amarela. Mas, uma pesquisa realizada na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP mostra que o “discurso” das reportagens e artigos publicados foi equivocado. “O país vivia uma epizootia, que caracteriza a manifestação contagiosa da doença em animais, e não uma epidemia”, aponta a jornalista Cláudia Malinverni, tratando o ocorrido como uma “epidemia midiática”.

Com base na análise de 118 matérias sobre o assunto veiculadas no jornal Folha de S.Paulo, entre dezembro de 2007 e fevereiro de 2008, a jornalista pôde observar outras informações imprecisas, como a não identificação do ciclo da doença e de que o mosquito transmissor, na oportunidade, teria sido o Aedes Aegypti. “A febre amarela acontece em dois ciclos, o silvestre, que atinge primariamente animais, sendo os humanos infectados acidentalmente, e o urbano, no qual o homem é o hospedeiro primário”, explica Cláudia. Ela justifica a opção pelo jornal por ser, na época, o de maior circulação nacional. O estudo Epidemia midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de S.Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008, foi realizado sob a orientação da professora Angela Maria Belloni Cuenca, do Departamento de Saúde Materno Infantil da FSP.

Nas Américas, a febre amarela urbana é transmitida exclusivamente pelo A. aegypti. Cláudia explica que até a década de 1950, o País adotou um modelo de erradicação da doença que fez com o mosquito desaparecesse. “Mais tarde, já nos anos 1970, ele retorna ao País, não mais como transmissor da febre amarela, mas sim da dengue”, descreve. Já na forma silvestre, a única que ocorre atualmente no Brasil, a transmissão se dá, principalmente, por mosquitos das espécies Haemagogus e Sabethes. Cláudia ressalta que a forma urbana, potencialmente epidêmica e de maior gravidade, não é registrada no Brasil desde 1942.

A origem
O início do que Cláudia denomina “epidemia midiática” se deu em Brasília, quando o jornal Correio Braziliense repercutiu uma nota técnica divulgada pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal voltada a profissionais do setor. A notícia do jornal, veiculada em dezembro de 2007, informava sobre a morte suspeita de macacos e de um homem, por febre amarela em Goiás, região endêmica. “A partir daí o tema foi ganhando proporções, com outros veículos da imprensa passando a se pautar pelo tema”, conta a jornalista.

O trabalho de Cláudia foi realizado com base na análise do discurso em que se considera que “o discurso é o que constrói uma realidade”. “Neste caso, o jornal foi capaz de transformar o cotidiano ‘discursivamente’”, descreve a pesquisadora. Afinal, como ela enfatiza, a ameaça de epidemia da doença preconizada pela imprensa não existiu.

Consequências
Enquanto isso, os equívocos continuavam. A jornalista observou que especialistas em saúde pública contrários à tese de epidemia tinham espaço menor na cobertura, em comparação com os que defendiam o risco epidêmico. Além disso, as notícias sobre a possível epidemia ganhou capas sucessivas nas edições da Folha de S. Paulo. Cláudia também destaca que o tema foi abordado não apenas nas reportagens, mas também por colunistas e comentaristas políticos (ao longo da cobertura, o jornal publicou apenas um artigo de um especialista em saúde).

Em decorrência da “epidemia midiática”, houve um exponencial aumento da demanda pela vacina contra a febre amarela. Dados do Ministério da Saúde mostram que o Brasil distribui, em média, entre 15 e 16 milhões de dose da vacina ao longo de 12 meses. Somente naquele período (verão 2007/2008), ao longo de 40 dias, o governo distribuiu mais de 13 milhões de doses. “Um dos três produtores mundiais da vacina credenciados pela OMS, o Brasil chegou a suspender a exportação do imunobiológico”.

Contudo, o maior problema relacionado ao aumento da demanda vacinal foi a ocorrência, em 2008, de 8 casos de reação adversa grave à vacina, dos quais 6 foram a óbito. Três dessas mortes foram por doença viscerotrópica, a mais grave reação.

Mais informações: Claudia.malinverni@usp.br

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