Hesio Cordeiro: ‘Falta uma real prioridade para a questão da saúde’

Transcorridos 25 anos da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), um de seus principais artífices, o médico Hesio Cordeiro, avalia que o principal desafio desse modelo na atualidade é desfazer as desigualdades regionais no atendimento à população. Na avaliação dele, ainda falta dar real prioridade à questão da saúde no Brasil. Um impulso para isso pode ter vindo das grandes manifestações populares que tomaram as ruas de dezenas de cidades em junho para defender bandeiras como a melhora na qualidade dos serviços públicos no país. Nesta quinta-feira (12/9), às 16h, durante a cerimônia de entrega da Medalha Jorge Careli de Direitos Humanos e do Prêmio Sergio Arouca de Saúde e Cidadania na sede da Associação dos Servidores da Fiocruz (Asfoc), será aberta oficialmente a mostra Permaneçamos lutando!, uma homenagem da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) a Cordeiro. A exposição também faz parte das comemorações dos 25 anos do SUS e busca rememorar a atmosfera de celebração e de desagravo que marcou a concessão do título de professorhonoris causa a Cordeiro em 1988, logo após seu afastamento da presidência do Inamps.

Otimista quanto aos rumos do SUS, Cordeiro vê no programa Mais Médicos, que busca levar profissionais brasileiros e estrangeiros a regiões desassistidas, um sinal de que o sistema de saúde se encaminha para corrigir distorções do passado e colocar em prática ações que não foram implementadas. Em entrevista, Cordeiro disse, porém, que a luta não está ganha. “A lógica privatista e empresarial que tentava se impor no setor de saúde no Brasil dos anos 80 ainda ronda o SUS”, alerta. “Temos visto uma série de secretarias estaduais e municipais (…) privatizando as ações de saúde, delegando às organizações sociais inclusive a atenção primária. Alguma coisa tem de ser revista para que isso seja revertido”, declarou. A entrevista a seguir foi publicada originalmente na Agência Fiocruz de Notícias.

Ao olhar para estes 25 anos de SUS, o que o senhor avalia que deu certo e o que não funcionou?

Hesio Cordeiro: A valorização da atenção primária à saúde foi uma coisa positiva. O que não deu certo foi não conseguir desfazer ainda as desigualdades regionais. A atenção primária se expandiu mais em alguns estados e menos em outros. No Norte e Nordeste, muito pouco. No Sul e Sudeste, desenvolveu-se mais. O objetivo do SUS era a universalização da atenção, que foi atingida, mas ainda não se conseguiu alterar as desigualdades regionais, que são econômicas, sociais e políticas. Isso ainda carece de uma solução.

É nesse ponto que o sistema precisa avançar com mais urgência?

Cordeiro: Seria no sentido de corrigir as desigualdades regionais e expandir o acesso às ações de saúde mais especializadas. A atenção primária resolve 80% dos problemas, mas não os 20% que dependem de uma intervenção médica, no sentido tecnológico, em nível secundário e terciário e até de especialização, que resolvem os problemas mais graves, como o câncer. São algumas das situações que ainda têm de ser resolvidas.

O que falta para que avancemos nessa direção?

Cordeiro: Falta uma real prioridade para a questão da saúde. Há uma questão de distribuição de recursos e de uma maior preparação dos profissionais. Falta um programa de educação permanente, que atinja a todos os profissionais de saúde. Faltam recursos; Falo no sentido de garantir os recursos tecnológicos para aquelas situações mais diferenciadas, de problemas de saúde mais graves, que não se resolvem apenas na atenção primária, resolvem-se com hospitais bem equipados e profissionais de saúde bem preparados.

As grandes manifestações de junho tinham como uma de suas bandeiras a exigência de mais qualidade nos serviços públicos de saúde. O Estado falhou em atender essa demanda da sociedade nas últimas décadas?

Cordeiro: Tem falhado no sentido de não estimular uma questão central na qualidade dos serviços de saúde – não estimulou o que chamamos de acreditação dos serviços de saúde. Acreditação envolveria gestão e formação dos profissionais. Os componentes da acreditação não têm sido considerados como uma diretriz para o aprimoramento da qualidade do sistema de saúde. Falta uma decisão política para estimular a acreditação nesse serviço.

Falta participação popular nas discussões sobre os rumos do sistema público de saúde?

Cordeiro: Isso é muito regional. Alguns estados desenvolveram uma intensa participação popular, enquanto outros não a desenvolveram ou a vincularam a pessoas e líderes comunitários muito ligados ao poder das secretarias de saúde. A participação popular deve ser ampliada, mas sem uma espécie de clientelismo vinculado ao poder das secretarias municipais e estaduais de saúde.

Depois de perder os recursos da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), a saúde vai ser contemplada com 25% dos recursos dos royalties do petróleo. Como o senhor vê essa medida?

Cordeiro: Essa medida é muito importante e resolve, mais imediatamente, o problema da (extinção da) CPMF. A destinação dos royalties do petróleo para a saúde e a educação são duas ações muito importantes que a presidente Dilma está exercendo. Acho que, em parte, já resolve esse problema. Agora, tem de se ver se realmente essa destinação de recursos vai acontecer na prática.

Como o senhor vê o programa Mais Médicos?

Cordeiro: Sou favorável ao Mais Médicos, inclusive à vinda de médicos estrangeiros, ao contrário do protesto de toda a categoria. Acho que médicos estrangeiros devem ser submetidos a uma revalidação permanente da prática deles. Não é só uma questão formal de fazer uma provinha e revalidar o diploma. É uma revalidação permanente da prática, com avaliações permanentes das ações que eles estão executando. Mas sou totalmente favorável à vinda dos médicos estrangeiros, especialmente para aquelas regiões mais desassistidas, em que não há médico nenhum, aonde os médicos não vão. Não é só um problema econômico; é um problema econômico e social. São regiões muito desprovidas de recursos. Eu me lembro do Carlos Gentile de Mello, que mencionava há muito tempo que não era apenas a distribuição de médicos que tinha de ser resolvida, e sim a questão global de desenvolvimento. Creio que o Mais Médicos ajuda a resolver (o problema) paliativamente, mas o que vai resolvê-lo mesmo é um desenvolvimento mais global de todas as regiões do país.

A que o senhor atribui a rechaça da classe médica ao programa?

Cordeiro: Ao fato de o pessoal entender que (o problema somente será resolvido) com um processo global de desenvolvimento e que a carência ou a inexistência de médicos em alguns lugares não se dá só por (falta de) recursos financeiros, mas também de recursos tecnológicos e de vontade política de desenvolver essas regiões. Agora, é lógico que há um espírito muito corporativo da profissão médica. Tem de haver o desenvolvimento global e uma maior participação e envolvimento dos profissionais de saúde – dos médicos em particular – no atendimento às populações das regiões mais carentes.

Uma das reclamações dos médicos brasileiros é que falta estrutura em parte no interior. Por que essas regiões mais afastadas estão mal equipadas?

Cordeiro: Porque não houve uma vontade política dos governantes estaduais e municipais no sentido de prover os serviços de saúde com os equipamentos adequados. Esse é um problema sério que não foi resolvido ainda.

O movimento que precedeu a criação do SUS combateu a adoção de modelo privatizante e empresarial para a saúde. O debate entre o público e privado segue atual?

Cordeiro: É um debate que está muito presente na própria visão dos profissionais de saúde, especialmente dos sanitaristas, que dão uma prioridade maior ao gasto público em saúde, e veem o privado como algo secundário. Na realidade, temos visto uma série de secretarias estaduais e municipais que estão privatizando as ações de saúde, delegando às organizações sociais inclusive a atenção primária. Alguma coisa tem de ser revista para que isso seja revertido. Tem de se aparelhar o Estado para que decisões sejam tomadas mais rapidamente e não haja tantos malefícios das ações corporativas. Não se deve ter uma ação privatizante dos sistemas de saúde.

Que riscos as ações privatizantes trazem para o sistema de saúde como um todo?

Cordeiro: O risco é desvirtuar a própria prática de saúde, tornando o sistema extremamente dirigido pela questão do lucro e dos ganhos pessoais, e não pelo bem da população, em especial a mais carente.

O senhor vai ser homenageado com o Prêmio Sérgio Arouca e com uma mostra que vai relembrar o tom de desagravo de sua saída do Inamps. Olhando para trás, como vê aquele momento da sua trajetória?

Cordeiro: Vejo como um momento importante, que não está totalmente resolvido. É uma espécie de rememoração das lutas que não foram totalmente resolvidas. É um chavão, mas digo que a luta continua, porque parte das propostas da 8ª Conferência Nacional de Saúde foi atendida, mas faltam muitas coisas para serem aperfeiçoadas. É por isso que eu digo que a participação popular é um estímulo para que os objetivos conferência sejam plenamente alcançados no futuro mais próximo possível.

O senhor é otimista em relação a esses avanços?

Cordeiro: Sou sempre otimista. Acho que estamos num bom caminho no sentido de rever alguns aspectos que não deram certo ou que não foram completamente implementados. Eles têm todas as condições técnicas e políticas para serem implementados a partir do que o governo vem desenvolvendo, especialmente na questão do Mais Médicos.

 

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