Aconteceu no sábado (30/1) o segundo Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas (conhecidas em inglês como NTDs), que tem por objetivo chamar a atenção para o fato de que mais de 1,7 bilhão de pessoas, em todo o planeta, continuam a sofrer com essas enfermidades. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as NTDs são um grupo diversificado de doenças transmissíveis que prevalecem em condições tropicais e subtropicais em 149 países, matam milhões de seres humanos e custam bilhões de dólares às economias em desenvolvimento a cada ano. Elas são causadas por agentes infecciosos ou parasitas e consideradas endêmicas em populações de baixa renda. Essas enfermidades, como a malária, a doença de Chagas, a leishmaniose visceral, a filariose linfática, a dengue e a esquistossomose, entre outras, apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisa, produção de medicamentos e no controle delas. Para marcar a data, monumentos em todo o mundo, como o Cristo Redentor, o Coliseu e a Muralha da China, foram iluminados nas cores laranja e roxo. O Castelo da Fiocruz também fez parte dessa lista e ficou iluminado de sábado para domingo (31/1). O projeto é liderado pela iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) e pelo Fórum Social para Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas (FSBEIN).
O vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Marco Krieger, disse que o dia serve para destacar os esforços dos atores da saúde global no enfrentamento das NTDs. “Vale a pena salientar a importância da data, no contexto de pandemia, porque as doenças infecto-contagiosas, associadas a populações vulneráveis, ainda tiram muitas vidas. Nós podemos usar o legado do enfrentamento da pandemia para enfrentar esses velhos problemas. E a Fiocruz pretende usar esse legado em inovação, trazido pelas novas tecnologias de diagnósticos e de obtenção de vacinas, na luta contra as NTDs”.
Segundo o coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) e ex-presidente da Fiocruz Paulo Buss, as doenças negligenciadas são enfermidades que, por afetarem as populações pobres, “não interessam às indústrias farmoquímica e farmacêutica. A negligência que adjetiva essas enfermidades se deve a esse fato, centralmente, embora o próprio sistema de saúde desconsidere muito, em seus programas, essas doenças. Esse título foi utilizado pela primeira vez há 25, 30 anos por um médico americano, Kenneth Warren, e esse conceito foi sendo incorporado até chegar à OMS”.
Buss ressalta que doenças como Chagas, dengue, hanseníase e leishmaniose são enfermidades que não recebem atenção para medicamentos e apenas muito perifericamente para vacinas. “No caso da dengue, como se espalhou demais, afetando populações com melhores condições, passou a receber atenção para que se desenvolva uma vacina. A doença de Chagas tem razoável controle desde as décadas de 1980 e 1990, com programas de erradicação no Brasil, mas as demais grassam, se reproduzindo em função da desigualdade”.
O coordenador diz que as NTDs também têm a ver com a desatenção do sistema de saúde, não apenas da indústria. “O número perto de 500 mil mortes por doenças desse tipo no mundo, por ano, é inaceitável, dado que são enfermidades das quais são conhecidos seus ciclos epidemiológicos, vetores, maneiras de transmitir etc. Elas são uma inaceitável expressão da desigualdade. Geram populações punidas pela desatenção e estão diretamente relacionadas com a situação socioeconômica das famílias afetadas. Algumas delas, como dengue, leishmaniose e doença de Chagas têm vetores que se desenvolvem em situações ambientais da pior qualidade, em que não existe água potável, há lixo acumulado e o esgoto corre a céu aberto. Uma triste realidade das periferias, onde vive a maioria dos pobres”.
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, fala sobre o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas
O pesquisador e chefe do Departamento de Política de Medicamentos da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Jorge Bermudez, diz que o dia serve de alerta para o sofrimento, já que são doenças perpetuadoras da pobreza, que atingem pessoas pobres em países pobres. “As indústrias não têm interesse em desenvolver produtos para essas doenças. Lembro que dentro desse grupo existem ainda as chamadas mais negligenciadas, como a tripanossomíase africana, a doença do sono. Não há investimento em inovação tecnológica para enfrentar essas enfermidades”.
Bermudez chama atenção para três datas. A primeira é 1999, ano em Médicos sem Fronteiras ganhou o Nobel da Paz e a partir do prêmio foi montado um grupo sobre NTD. Esse grupo propôs, em 2003, uma entidade não lucrativa para desenvolver medicamentos para NTDs, o que deu origem à iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), que desde então vem trabalhando nesses projetos. Em 2012 houve a Declaração de Londres para estabelecer metas em NTDs. E em 2020 ocorreu o primeiro dia, de maneira que este é o segundo ano em que se alerta para o sofrimento mas também se fala do que se faz.
“Na Fiocruz há muitos grupos trabalhando intensamente com hanseníase, doença de Chagas, leishmaniose e outras. Por fim, em lugar de doenças negligenciadas, devemos chamar de populações negligenciadas. Devemos discutir a pessoa na sua integralidade. Não é possível que tratemos de uma pessoa com doença de Chagas e depois ela vá morrer de diabetes ou hipertensão. O SUS está na linha de frente e na pandemia e em todas os outros graves problemas de saúde ele está na linha de frente”, observa Bermudez, que é representante da Fiocruz no Conselho Diretor de DNDi (Genebra) e DNDi América Latina.
Para a pesquisadora Andréa Silvestre, chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em Doença de Chagas do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), é importante que a data confiram visibilidade a essas enfermidades. “São doenças que acometem países pobres, associadas a questões infectocontagiosas e com íntima relação com a vulnerabilidade social e econômica. São mais de 20 doenças, que se caracterizam por baixíssimos investimentos em recursos para pesquisas e o desenvolvimento dos sistemas de saúde visando atender melhor essas populações. São, na verdade, pessoas que vêm sendo negligenciadas, acometidas pela falta de condições sociais e habitacionais e expostas a agentes infecciosos que causam doenças graves e complicações crônicas”.
Andréa lembra que o Brasil é o país com maior carga de morbimortalidade por essas doenças, retratando um cenário de pobreza estrutural e de baixo acesso aos serviços de saúde, com baixo investimento em tecnologia, o que seria crucial para que essas pessoas tivessem um cuidado integral e adequado. “Com a pandemia houve um impacto ainda maior em relação a essas doenças já que os países, e os pobres ainda mais, viram seus sistemas de saúde sobrecarregados. Nesses países mais vulneráveis houve um rearranjo para atender à pandemia, com hospitais sendo direcionados para o tratamento da Covid-19, redução de atendimento, desmobilização de equipes e programas de vigilância, deslocamento de profissionais de saúde”.
Para a pesquisadora, “o cuidado com a NTDs deve continuar de forma integrada aos efeitos da pandemia, com proteção aos profissionais e às comunidades. É crucial mobilizar pessoas e recursos e fortalecer as ações sociais”. Ela ressalta que enfermidades como a doença de Chagas e a leishmaniose têm um caráter crônico e esses pacientes necessitam de cuidado integral e atenção específica. “Precisamos em 2021 nos unir em torno da promoção da saúde mundial, dando um olhar mais cuidadoso a essas pessoas que sofrem com doenças graves, que reduzem anos de vida e a capacidade laborativa dos jovens”.
Andréa sublinha que o Dia Mundial foi pensando também em relação à Agenda 2030. “Pela primeira vez as NTDs entraram nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A meta 3.3 diz que até 2030 precisamos acabar com epidemias de tuberculose, Aids e malária, combater hepatites, doenças da água e transmissíveis”.
Segundo o pesquisador e coordenador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), Carlos Morel, “a ocasião é propícia para avaliar os progressos obtidos no ano que passou e discutir ações e medidas necessárias no futuro”. Ao olhar para trás, Morel recorda que a Fiocruz, desde as suas origens, tem em seu DNA a prevenção e o controle dessas doenças que, estima-se, são responsáveis por uma em cada cinco mortes no mundo. “Nossa tradição na área é riquíssima, com destaque para os históricos trabalhos de Carlos Chagas relatando a descoberta da enfermidade que hoje é conhecida pelo seu nome – a doença de Chagas. A história da Fiocruz e de seus pesquisadores é rica em várias NTDs, como leishmanioses, esquistossomose, filariose, hanseníase, malária e dengue”, afirma Morel, que foi presidente da Fiocruz e diretor do Programa de Doenças Tropicais da OMS.
O CDTS hospeda, desde 2009 um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), programa do Governo Federal financiado pelo CNPq, Capes e Faperj. Em sua primeira fase tinha o rótulo de INCT de Inovação em Doenças Negligenciadas (INCT-IDN). A partir de 2016 passou a se chamar INCT de Inovação em Doenças de Populações Negligenciadas (INCT-IDPN). De acordo com Morel, a nova denominação se deu por duas razões.
“Quando se atende uma determinada comunidade, adotar uma abordagem ‘vertical’, focada em uma única doença, deixa a desejar, pois são variadas e diferentes as enfermidades e condições de saúde da população, ela toda, em geral, negligenciada pelos poderes públicos; além disso, o surgimento de epidemias, como as de zika e chikungunya, que não estavam em nenhuma lista de NTDs, mostrou claramente a necessidade de estarmos sempre abertos para novos desafios sanitários e não nos atermos a uma lista determinada de doenças. Essa abertura do escopo do nosso INCT, em sua segunda fase, foi aprovada por consenso em 2017 pelo Comitê Gestor do INCT. Decisão que se mostrou ainda mais correta com a chegada da pandemia causada pelo Sars-CoV-2, a Covid-19, que demonstrou cabalmente a importância do SUS para nosso país – seja no controle de pandemias, epidemias ou das NTDs, que nos afligem desde tempos imemoriais”.
Para quem tiver interesse em mais informações sobre o CDTS e os INCTs, Morel sugere uma visita ao site. Ali estão listadas as principais linhas de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, assim como a evolução da produtividade anual desde 2009, ano da criação dos INCTs abrigados no CDTS/Fiocruz.
Para que o tema das doenças negligenciadas ganhe ainda mais relevância, o projeto convidou a população a demonstrar seu apoio ao Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, juntando-se a personalidades do Brasil e do mundo que vão compartilhar uma foto com a sigla NTD escrita em um dos dedos da mão, acompanhada das hashtags #EndTheNeglect e #BeatNTDs na rede social de preferência. A mensagem simboliza que, a cada cinco pessoas, uma delas é afetada por alguma doença tropical negligenciada em todo o mundo. Na lista das doenças negligenciadas estão úlcera de Buruli, doença de Chagas, dengue, dracunculíase (doença do verme-da-guiné), equinococose, platelmintos, tripanossomíase africana (ou doença do sono), leishmaniose, hanseníase, micetoma, filariose linfática, oncocercose, raiva, esquistossomose, helmintíase transmitida pelo solo, envenenamento por picada de cobra, tracoma, teníase e bouba.