Reflexões sobre políticas, por Drauzio Varella
Os saudosistas que me desculpem, mas a Saúde Pública no País melhorou muito. Antes que você, leitor, fique revoltado, vou contar um caso pessoal.Em 1950, um dia acordei com os olhos inchados. Aos 6 anos de idade, foi minha primeira visita ao pediatra. Morávamos no Brás, povoado por imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e árabes que fugiam da fome e das guerras, atraídos pelas fábricas espalhadas pelo bairro cinzento.
Criar filhos sem pediatra não era privilégio do Brás, mas a dura realidade dos bairros operários. Quando ouço louvarem o tempo dos médicos que visitavam doentes em casa e tomavam cafezinho na sala, imagino que deve ter sido ótimo para as famílias com poder aquisitivo para pagá-los. No lugar em que nasci, quando aparecia um homem com maleta de médico no portão das casas coletivas, a molecada na rua sabia que alguém estava à beira da morte.
Se assim era a vida a 15 minutos da Praça de Sé, numa época em que apenas 30% dos brasileiros moravam nas cidades, como seria a assistência médica nos confins do mundo rural?
O Brasil de hoje é outro. A população mais do que triplicou e migrou para o espaço urbano. Apesar de tudo, a assistência médica disseminou-se pelo País. Precária, perdulária, desigual, mal organizada, alvo de manipulação a serviço de interesses políticos e de administradores corruptos, dirá você. Concordo, mas jamais tantos tiveram acesso a ela.
Até em pontos distantes do território e em cidades com milhões de habitantes, a maioria das mães consegue levar os filhos ao médico. Muitas vezes precisam acordar de madrugada e esperar horas pelo atendimento, mas eles não passam a infância sem pediatra, como antes. Mesmo os hospitais públicos, em grande parte administrados precariamente, apresentam ilhas de excelência em alguns serviços oferecidos a pessoas que jamais poderiam sonhar em pagar por eles.
O Programa de Vacinações, por exemplo, é um dos maiores programas gratuitos do mundo; cobre a quase totalidade de nossas crianças e se torna cada vez mais completo. Estamos bem perto de vacinar 100% dos que nascerem no País.
Nosso Programa de Tratamento da Aids é referência mundial. A distribuição gratuita de antivirais mudou o panorama da doença não apenas no Brasil, mas serve de modelo para os países africanos e asiáticos mais assolados pela epidemia.
Em contrapartida, por que continuamos a ver hospitais sucateados, filas enormes às portas de pronto-socorros, macas nos corredores, mau atendimento e desrespeito aos usuários?
Em parte, por um mal-entendido que persiste há mais de meio século: o de que hospitais e unidades de saúde devem ser administrados pelo Estado. A administração pública é antes de tudo burocrática e incompetente para não dizer corrupta. De fato, é obrigação do Estado oferecer serviços de saúde aos que não podem pagar por eles (e somente a eles), mas não a de geri-los. Instituições sem fins lucrativos como as Santas Casas, espalhadas pelo Brasil há séculos, representam modelos alternativos de gestão comprovadamente mais ágil e que atende melhor às necessidades dos usuários.
Mas, também, porque políticas públicas de saúde destinadas apenas à população de baixa renda sempre funcionam precariamente. Por que motivo os programas de vacinação e de tratamento da Aids deram certo?
Porque servem a pobres e ricos. Quando faltam antivirais ou vacinas no Posto de Atendimento, as pessoas gritam e os jornais noticiam. Quando faltam anticoncepcionais ou quando é negado o acesso a vasectomias e laqueaduras a mulheres e homens que têm o direito a elas garantido por lei, ignomínia social que condena gente pobre à miséria irreversível, quem noticia? Quem abre processo contra as autoridades que não cumprem a lei?
O senador Cristóvão Buarque afirma que, se o analfabetismo fosse contagioso, de modo que uma pessoa culta ao se aproximar de um analfabeto adquirisse essa condição, há muito o analfabetismo teria sido erradicado.