Um arquivo pessoal é realmente capaz de expressar a trajetória de uma pessoa? E, em uma coleção, como distinguir as obras que representam o interesse genuíno do proprietário das que simplesmente foram acumuladas ao longo dos anos? Os debates ocorridos no terceiro e último dia (16/9) do encontro Da minha casa para todos: a institucionalização de acervos bibliográficos privados responderam algumas dessas questões. Promovido pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), o evento reuniu em Petrópolis especialistas renomados de diversas instituições brasileiras e do exterior, que discutiram como captar, selecionar, tratar e disponibilizar acervos bibliográficos de pessoas que tiveram destaque em suas áreas de atuação. A ideia é que, com a democratização do acervo, se possa contribuir com a memória coletiva, o patrimônio cultural, a pesquisa científica e a produção de novos conhecimentos.
A seleção de documentos foi abordada pela arquivista do Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), Maria Celina Soares de Mello e Silva, que ressaltou a necessidade de avaliação de quais documentos devem ser incorporados aos arquivos pessoais. Para tanto, ela explicou como funciona a Política de Aquisição do Mast, que há 30 anos busca disponibilizar os arquivos pessoais de cientistas até então inacessíveis.
A política foi criada não só para orientar os profissionais da instituição, mas também para quem se interessa doar. “A família acha que a fotografia, e a correspondência não interessam. Mas essa seleção deve ser feita pelo profissional. Quando a gente acha que tem algo que não interessa, a gente devolve para os familiares”, disse. Silva explicou ainda a natureza dos documentos não é critério de recusa. Os chamados documentos tridimensionais podem ser em tecido, couro, mineral, digital etc. “Os critérios estão mais nas áreas [do saber em que o cientista/proprietário da coleção atua] do que no suporte”.
A professora e coordenadora do programa de Pós-Graduação em Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa, Lucia Maria Velloso de Oliveira, abordou as singularidades dos arquivos pessoais. Para ela, esses arquivos possuem a marca da individualidade / intimidade, são documentos que podem ser atestados e têm um significado atribuído que os torne único. “Um livro [com anotações] não é só mais um livro. É um documento que passa a ter significado arquivístico”, exemplifica. A professora disse ainda que o grande dos profissionais que analisam estes itens é estabelecer as relações entre o material bibliográfico e o arquivístico que um indivíduo mantém ao longo da vida.
Para a Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Ana Maria de Almeida Camargo, não se pode dissociar os elementos da vida do indivíduo, visto que muitas vezes os arquivos pessoais têm perfis diferentes – um crítico literário, por exemplo, vai receber muitas obras que não representam seu interesse ao longo da vida. De acordo com ela, a principal característica do arquivo é justamente a incompletude. “Se for construção [de uma persona], não é arquivo. Nenhum arquivo é capaz de expressar a trajetória de um indivíduo”.
Encerramento
Pela tarde, a mesa redonda O Colecionismo e as Instituições Públicas discutiu como a aproximação entre coleções de acervos bibliográficos e o colecionismo, historicamente concebido na museologia, são de extrema relevância para uma política de formação e desenvolvimento de coleções. Participaram do debate a professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Simone da Rocha Weitzel, o professor do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (Unirio) Ivan Coelho de Sá e ainda o diretor do Museu Imperial e presidente do Comitê Brasileiro do Programa Memória do Mundo da Unesco, Maurício Vicente Ferreira Jr.
Por fim, a conferência de encerramento De minha casa para o mundo dos leitores: uma feliz transmissão de acervo foi proferida pela professora Associada e procientista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Tânia Bessone. Na palestra, a pesquisadora se concentrou em contar a preocupação de estudiosos e homens de letras em preservar o que sabiam ser de grande valor e raridade para bibliotecas e arquivos em uma época que a transmissão de acervos particulares para acervos públicos era rara (sécúlo 19 até início do 20).