Campanha do Boticário para o Dia dos Namorados trouxe casais gays pela 1º vez em 38 anos de história da marca
Em um momento em que o Congresso Nacional emite sinais contrários à ampliação de direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais (LGBT), a publicidade brasileira parece fazer o caminho contrário, ao dar uma visibilidade inédita a este público.
O tema entrou na pauta nacional quando, há três semanas, a empresa O Boticário lançou sua campanha para o Dia dos Namorados com dois casais heterossexuais e dois casais homossexuais, em que eles trocam presentes e carinhos e se abraçam. Foi a primeira ação do gênero em 38 anos de história da marca.
A campanha teve grande repercussão. No portal YouTube, o vídeo já foi visto 3,9 milhões de vezes e recebeu 376,7 mil curtidas. Mas não foi unanimidade. Outras 190,3 mil pessoas o reprovaram. E, após receber mais de 30 reclamações que questionam a moralidade do anúncio, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) decidiu avaliar se ele fere suas regras.
Entre os insatisfeitos, está o pastor evangélico Silas Malafaia, que propôs um boicote à marca. “Tenho o direito de preservar macho e fêmea, porque esta é história da civilização humana. Tenho direito, no estado democrático, de fazer campanha contra qualquer um que venha levantar isso”, disse Malafaia na internet. Para ele, o anúncio “é uma tentativa de querer ensinar crianças e jovens a homossexualidade.”
Leia mais: Em votação histórica, Irlanda aprova casamento gay
Diante da polêmica, o Boticário se fechou em copas. A empresa orientou a agência que elaborou a campanha a não comentá-la e só falou sobre o assunto publicamente por meio de uma nota na qual disse ter buscado “abordar com respeito a ressonância atual sobre as mais diferentes formas de amor”, destacando que “valoriza a tolerância e respeita a diversidade”.
O Boticário não parece estar sozinho. Em abril, uma campanha do bombom Sonho de Valsa trazia o slogan “Pense Menos, Ame Mais”, com diversos casais se beijando, entre eles um de lésbicas. Segundo a Mondelez, dona da marca, a reação à campanha tem sido muito positiva.
“Nas redes sociais, a marca tem aumentado a sua audiência e engajamento desde que a campanha estreou. O novo filme possui mais de 7,5 milhões de views e as interações positivas passam de 90%”, disse a companhia por nota.
No Dia Mundial de Luta Contra a Homofobia, em maio, a BB Seguros divulgou em sua conta no Twitter uma propaganda “para todas as formas de amor”, com um desenho de uma família gay.
Na Parada do Orgulho Gay de São Paulo, a fabricante de celulares Motorola lançou uma campanha em mídias sociais com a hashtag #EscolhaOAmor, junto com ações no evento. Foi a primeira vez que a empresa desenvolveu uma campanha para o evento. “Escolha amar quem te completa, quem te faz feliz. Escolha amar da sua maneira, pode ser de um jeito intenso ou sereno”, diz o post. Questionada sobre as razões da ação, a empresa disse, por e-mail “respeitar os indivíduos e suas escolhas”.
A fabricante de sorvetes Ben & Jerry’s também enviou uma mensagem semelhante por suas contas nas redes: “Ame quem você quiser amar”, diz a peça publicitária.
Leia mais: ‘Ninguém mais pode dizer que não somos uma família’, diz ativista gay após decisão do STF
“A sociedade avançou”, diz à BBC Brasil Florence Scappini, diretora de marketing da empresa aérea Gol, que incluiu um casal de homens gays com seu filho em sua campanha para o Dia das Mães, veiculada na internet, tendo como mote a adoção.
“Assim como vários outros temas, este ainda não é um ponto pacífico. Mas é necessário desbravar estas barreiras. Isso faz parte ao desenvolvimento cultural de nossa sociedade, que precisa ter como princípio o respeito ao diferente.”
Segundo a executiva, a campanha teve uma aprovação de 95% entre os consumidores, um dos índices mais altos já registrados em suas ações.
“Claro que tivemos reclamações, algumas dizendo que estávamos destruindo a família brasileira. Mas foram pontuais e não reverberaram”, afirma Scappini.
“Sempre acreditei que podemos retratar temas polêmicos desde que seja natural e tenha aderência à marca, como neste caso. Transportamos todos os tipos de pessoas, então, temos que retratar isso em nossa comunicação com o público.”
Oportunidade
Mas afinal, por que a publicidade brasileira está, digamos, saindo do armário?
Para algumas empresas, um dos motivos parece ser uma disposição em ganhar espaço entre um público que costuma ter um poder aquisitivo maior que a população em geral. Já faz algum tempo que consultores de negócios falam do potencial de consumo da população LGBT.
Segundo o último censo do IBGE, de 2010, existem 67,4 mil casais formados por pessoas do mesmo sexo no país. Uma pesquisa de 2013 do Instituto Data Popular estima que só este grupo gaste por ano R$ 6,9 bilhões.
Especialistas também enxergam um fenômeno novo por trás da inclusão de casais gays nessas peças publicitárias.
“Uma coisa é fazer propaganda tendo como alvo o público LGBT – você pode fazer uma veiculação mais segmentada. Mas o que estamos vendo hoje, por exemplo com a propaganda do Boticário, é a inclusão de casais gays em propagandas para o público em geral”, opina Silvio Sato, professor do curso de Publicidade e Propaganda da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e especialista em gestão de marcas.
“O mundo está mudando. Temos uma tendência clara de maior tolerância e respeito à diversidade no Brasil, apesar de algumas reações conservadoras no Congresso e em alguns segmentos sociais. Neste contexto, algumas empresas estão se dando conta de que pode ser um bom negócio estar alinhado com este novo ‘espírito do tempo’. Também estão sendo mais cobradas para que seus valores e práticas caminhem nessa direção – e estão respondendo a isso.”
Fabio Mariano, professor do curso Ciências Sociais e do Consumo da ESPM e que já deu consultoria para o Boticário concorda com o diagnóstico.
“Existe hoje uma pressão potencializada pelas redes sociais para que as empresas se posicionem em relação a certos temas, que tenham responsabilidade e ética em suas práticas e valores. Ou seja, que se tornem ‘empresas-cidadãs'”, diz ele.
“É claro que a ‘causa’ principal das companhias é obter lucro, mas elas estão percebendo que, nessa estratégia, pode ser interessante se ligar a causas que mobilizam a sociedade.”
Mercado americano
Rodrigo Amantea, especialista em marketing do Insper, lembra que em outros países essa tendência já está mais consolidada.
Nos EUA, há 20 anos a rede Ikea trouxe um comercial em que um casal de homens avaliava mesas de jantar. A peça publicitária foi exibida apenas uma vez, nas cidades de Nova York e Washington, e acabou retirada do ar após a empresa receber ameaças de bomba contra suas lojas.
Hoje, existe uma lista crescente de marcas de diversos setores com propagandas onde figura o público LGBT ou em prol dele. Entre elas, a Starbucks, Absolut, Amazon, Crate & Barrel, Ray-Ban, Gap, American Airlines, Tiffany & Co, Hallmark, Wells Fargo, Budweiser, Microsoft, Apple, Target, Levi’s e Honey Maid.
“Um dos casos mais emblemáticos é o da bolacha Oreo, que fez uma peça publicitária apoiando a causa LGBT durante as comemorações de seus cem anos, em 2012”, diz Amantea.
“A campanha, que trazia uma bolacha com um recheio com as cores do arco-íris, buscava rejuvenescer a marca.” Ele lembra que, na época, algumas pessoas também pregaram um boicote à Oreo nas redes sociais. “A marca certamente deve ter perdido alguns consumidores, mas ganhou outros – e mais jovens.”
Para Amantea, é “bem possível” que o objetivo do Boticário também tenha sido rejuvenescer seu perfil de clientes. “As campanhas que abraçam valores como diversidade têm obtido grande repercussão em função da polêmica em torno do tema. No geral, isso traz resultados em ganhos de imagem e de mercado no médio prazo”, diz ele.
É claro que, ao tocar em um tema polêmico, essas campanhas também têm riscos. Luis Grottera, da Rosenberg Consultioria de Branding, por exemplo, acredita que se a companhia não se engajar mais profundamente com a causa LGBT pode acabar sendo vista como “oportunista”.
“A empresa precisa ser consistente em suas práticas e valores para que não fique parecendo que está usando uma polêmica só para ganhar exposição”, diz Grottera.
“Se a empresa faz uma campanha em favor da diversidade hoje e amanhã é acusada de discriminação, o dano à imagem pode ser potencializado”, concorda Sato.
Fernando Quaresma, presidente da Associação da Parada do Orgulho Gay de São Paulo, que tem o Netflix como patrocinador pelo segundo ano seguido, além da Caixa Ecônomica Federal e da Petrobras, que apoiam o evento há mais tempo, considera importante que empresas incluam o público LGBT em sua publicidade, mas faz uma ressalva.
“Isso dá visibilidade a este tipo de afeto, mas elas ainda fazem isso mais por razões comerciais do que por apoio ao movimento social. Não sei o que falta para que estas empresas que manifestam uma visão favorável aos gays apoiem projetos LGBT.”
Política
Em contraste a este movimento, o Congresso Nacional vem dando sinais conservadores em relação aos direitos LGBT. Está sendo avaliado na Câmara um projeto de lei conhecido como Estatuto da Família, que propõe incluir na Constituição a definição de família como sendo exclusivamente aquela formada pelo casamento entre um homem e uma mulher. A proposta ainda prevê o veto da adoção por casais gays.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que é ligado à igreja evangélica Assembleia de Deus e foi alvo de vários protestos na última parada em São Paulo, já tuitou que o “Brasil está sob ataque de gays, abortistas e maconheiros”. Cunha conseguiu desarquivar neste ano seu projeto para instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual”, sugerido pela primeira vez em 2010, e disse em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em fevereiro ser contra o casamento gay.
Ainda está para ser votada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto de lei que, caso aprovado, proibiria que a publicidade infantil no país retrate famílias gays. De acordo com a proposta, a “família é a base da sociedade e, quando exibida na propaganda comercial, institucional ou governamental, deverá observar a unidade familiar prevista no artigo 226, §3º da Constituição Federal”.
O Conar também aceitou julgar uma ação aberta após receber reclamações contra a campanha do Boticário. “É um tema polêmico, e há uma fração da sociedade que não gosta e reclama”, diz o porta-voz do órgão, Eduardo Correa, à BBC Brasil. “Serão avaliados critérios objetivos, como a veracidade, a respeitabilidade e se há ofensas, mas não a questão da orientação sexual.”
Não se trata da primeira vez que o Conar julga uma ação assim. Em 2006, foi recomendada a retirada de um outdoor de uma empresa de preservativos e géis lubrificantes que trazia um casal homossexual, por ter sido considerado que a cena era sensual demais para ser exibida na rua. Em seu parecer, o relator Ênio Rodrigues esclareceu que a orientação sexual retratada no anúncio não foi motivo de restrição e que a peça seria igualmente ousada se mostrasse um casal heterossexual.
Em 2010, o Conar também se recusou a analisar as reclamações sobre a suposta orientação sexual retratada na campanha de uma marca de sapatos com as atrizes Cleo Pires e Juliana Paes. Novamente, o cunho sensual foi o foco. Desta vez, a propaganda foi mantida.
Questionado por que o Conar decidiu desta vez instaurar uma ação para avaliar a campanha do Boticário, com base em reclamações sobre a orientação sexual de dois casais do anúncio, quando o órgão já havia rejeitado por duas vezes avaliar este tema, Correa diz que “a denúncia é assumida pelo Conar para que o consumidor não tenha ônus de vir ao Conar defender seu ponto de vista” e que a “abertura do processo não significa a condenação do anúncio”.
Amantea, do Insper, acha difícil entende em que bases será feito o julgamento. “Será um julgamento atípico porque é difícil ver qualquer excesso de sensualidade em uma propaganda em que o casal nem se beija”, diz.