O brasileiro Roberto Wright Reis acaba de voltar de uma temporada de dois meses em Serra Leoa. Durante esse tempo, tudo em sua vida girava em torno do ebola. O tempo todo.
Roberto trabalha para a ONG Médicos Sem Fronteiras e, nessa missão, chefiou o departamento de promoção de saúde em Kissy, nos arredores da capital Freetown, e participou da construção de uma maternidade para atender grávidas contaminadas.
Suas tarefas envolviam desde discutir com líderes tribais maneiras de promover boas práticas de saúde até receber os doentes e, muitas vezes, ajudar a enterrá-los, passando por confortar famílias das vítimas e mães que perdiam seus bebês – as chances de uma grávida com ebola não abortar são raríssimas e crianças com menos de cinco anos raramente vencem a doença.
De sua casa no Rio, ele conta à reportagem como fazia para se manter firme e não se emocionar diante de tantas situações limites e de dor e pressão insuportáveis.
“Não me emocionar? Isso não existe. O dia em que eu parar de me emocionar é o dia de parar. É essa emoção que me motiva.”
E não foram poucas as situação de emoção pelas quais Reis – que é formado em Relações Internacionais e tem mestrado na Sorbonne em gestão de crises e ajuda humanitária – passou nesses dois meses.
“É claro que eu vi muita coisa triste. Eu sempre digo que é uma montanha-russa, e por muitos períodos nossa equipe ficou na parte de baixo, em dias que tínhamos muitas mortes e poucas altas de pacientes curados. Mas eu prefiro me ater aos momentos felizes e que recompensam qualquer esforço.”
Adama
Durante a mais de uma hora de conversa com a BBC Brasil, Reis contou várias passagens da história de Adama, que chegou grávida à maternidade do MSF.
“Em uma epidemia como essa, as grávidas costumam ser rejeitadas no sistema de saúde. Como têm uma alta perda de fluidos, elas têm maior propensão de transmitir ebola. E a Adama era uma dessas mulheres”, conta.
“Eu nunca vou esquecer do abraço que a gente deu no dia em que ela teve alta. Nunca. Porque em alguns momentos, ela quase desistiu. Ela sempre era alegre, mas teve um dia em que não quis sair para tomar sol, quis ficar deitada, parecia estar se entregando. Lembro de ter entrado lá (na área de pacientes contaminados), olhado nos olhos dela e perguntado o que ela queria comer, mesmo sabendo que o ebola mina o apetite de qualquer pessoa. Ela me disse que sentia falta da sopa de pimenta, que é típica de lá.”
Reis conta que ir atrás da sopa e vê-la comer e, depois, ficar mais disposta, é o tipo de atitude que o fazia voltar ao centro diariamente e a vestir sua roupa especial – “de astronauta” – e aguentar o calor de 40ºC dentro da vestimenta para sentar no leito do paciente e tentar confortá-lo e encorajá-lo.
Antes de Adama ter alta, ele conta que visitou a família para explicar como ela estava e falar da sua recuperação. Tudo para evitar que ela fosse estigmatizada, como acontece com frequência com os que vencem o ebola.
Estar em um contexto desse, explica o brasileiro do MSF, também é um exercício constante de aprender a se colocar no lugar do outro.
“Teve um caso de uma avó, que havia testado negativo, que insistiu em ficar com o netinho bebê na área dos confirmados com ebola”, lembra ele.
“Como você lida com situações inesperadas como essa? Não dá para simplesmente proibi-la. Foi preciso entender sua posição e trabalhar para apenas explicar como ela deveria agir para não se contaminar também.”
Contra todas as expectativas
Em outra história inspiradora, Reis lembra de outra grávida, que acabou perdendo o bebê aos 7 meses de gestação.
“O dilema era que mesmo quando ela se curou, ela não podia sair do hospital porque o bebê que estava em sua barriga estava contaminado. Tanto o feto como o cordão umbilical carregam uma alta carga viral. E não era possível fazer uma cesárea. Então, ela precisava ficar lá até expelir o feto.”
Mas em vez de se deprimir com a situação, Reis conta que essa mulher teve forças para cuidar das crianças internadas.
“É complicado cuidar de bebês com aquela roupa. Mas ela não precisava de nada disso porque, por ter sido curada, tinha imunidade.”
“E então, ela dedicou seu tempo a nos ajudar. Carregava os bebês. Ajudava a cuidar deles – e fazia tudo isso sorrindo. Tinha um menino de um ano e meio que ela acabou ficando mais próxima. Passava muito tempo dando água de coco para ele – ele adorava”, conta.
“No final, contra todas as expectativas, esse menino sobreviveu. E acompanhar a jornada dessa mulher e desse menininho… nada pode ser mais inspirador”, conta Reis, dizendo que mesmo em seu período de descanso, está sempre acompanhando as notícias sobre o ebola.
“É preciso lembrar que um paciente apenas pode deflagar um novo surto.” Para ele, a experiência que teve em Serra Leoa mostrou que, para lidar com novos surtos, é preciso fazer um trabalho contínuo de conscientização das pessoas, sempre envolvendo a comunidade e respeitando a cultura local.
Lenço branco
Reis lembra do quanto aprendeu nas reuniões com os chefes tribais e outros líderes e moradores que participavam das reuniões semanais promovidas pelo MSF. “Pelos costumes locais, era preciso bater três vezes na porta antes de entrar no mortuário. Para os muçulmanos, cobrir o rosto da vítima com uma lenço branco era importante, por exemplo. Quando fazemos isso, a família percebe o respeito.”
Trabalhando com ajuda humanitária desde 2012, o brasileiro já havia atuado com com líderes locais e conscientização da população em outras de suas missões, mas normalmente em situações de conflito, como na Costa do Marfim e na Libéria (pela Acnur, a agência para refugiados da ONU) ou na República Centro-Africana, já no MSF.
Em Serra Leoa, Reis teve de adaptar sua experiência para um cenário de epidemia que já matou mais de 10 mil pessoas. E conta que aceitaria, sem piscar, uma nova missão em áreas afetadas pelo ebola.