Cerca de 90% dos recursos para pesquisa e desenvolvimento no setor de fármacos são destinados para medicamentos contra doenças que atingem 10% da população mundial, como hipertensão e diabetes.
Enquanto isso, a dengue atinge cerca de 50 milhões de pessoas em mais de cem países. A malária, para a qual não há medicamentos, infecta mais de 300 milhões e mata 1 milhão de pessoas a cada ano. A tuberculose, para a qual não se lança um novo medicamento há 30 anos, ceifa 2 milhões de vidas por ano. Só no Brasil, 46 mil pessoas morrem anualmente no Brasil com doenças infecciosas.
Para o professor Carlos Morel, diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Brasil, ao contrário da maioria dos países que sofrem com essas doenças, tem capacidade técnica para suprir a necessidade de gerar novos medicamentos de combate a elas.
Segundo ele, com vontade política, parcerias junto ao setor privado e uma política mais robusta de ciência e tecnologia que favorecesse a inovação o país poderia aproveitar uma oportunidade única de se tornar um produtor de medicamentos para essas doenças, melhorando sua infra-estrutura industrial e beneficiando a população com menos recursos.
Morel, que publicou na revista Nature, em setembro, um artigo sobre o assunto (para ler, acesse o seguinte endereço: http://www.nature.com/nature/journal/v449/n7159/full/449180a.html), concedeu à Agência FAPESP a seguinte entrevista:
Agência FAPESP A falta de retorno financeiro é a principal causa para que não se desenvolvam fármacos voltados ao combate das chamadas doenças negligenciadas, típicas de países pobres?
Carlos Morel Essa é a principal dificuldade para a pesquisa. Mas a questão envolve diferentes tipos de problemas. Temos, por exemplo uma vacina contra a poliomielite que é quase gratuita. Mas há dificuldade para fazer com que ela chegue à população: é uma falha de saúde pública. Em outros casos, há uma falha de mercado: o medicamento existe, mas é muito caro, como os anti-retrovirais. Outras vezes, há uma falha da ciência, isto é, o medicamento não existe porque ninguém conseguiu desenvolver. É o caso da malária.
Agência FAPESP Em que proporção essas doenças são negligenciadas?
Carlos Morel Para se ter uma idéia, cerca de 90% dos recursos são aplicados em doenças que atingem 10% da população mundial, como hipertensão e diabetes. São doenças que atingem quem pode pagar. A indústria investe praticamente todos os esforços nelas, porque o retorno é rápido. É preciso criar mecanismos e sistemas capazes de desenvolver medicamentos voltados aos que não podem pagar. Para isso, é necessário que haja ações do setor público e do setor filantrópico.
Agência FAPESP A solução desse impasse está nas parcerias entre governo e iniciativa privada?
Carlos Morel Não se pode esperar que as empresas privadas façam caridade, já que elas precisam dar satisfação aos acionistas. Mas há uma série de tentativas para tentar compensar a falta de interesse da indústria atraindo recursos públicos e de filantropia. O problema é que muito da tecnologia de desenvolvimento de drogas está no setor privado. Além disso, embora sejam ótimas, essas iniciativas ficam muito aquém do que deveria ser feito.
Agência FAPESP É possível avaliar o tamanho dessa lacuna?
Carlos Morel Algumas análises atuais mostram que uma nova droga, desenvolvida pelo setor privado, custa em torno de US$ 1 bilhão. Essa cifra é discutida, mas na literatura mundial a maior parte dos estudos aponta para isso. Além disso, os testes clínicos são muito demorados. Perto disso, o orçamento para doenças negligenciadas é muito baixo. Todas as parcerias existentes atingem apenas a casa dos milhões.
Agência FAPESP Pode-se dizer também que, além da questão econômica, essas doenças são negligenciadas por falta de vontade política, já que as populações atingidas têm pouco poder de pressão?
Carlos Morel Sem dúvida. Uma prova disso é o caso da Aids. Antes de a doença aparecer, o Brasil nunca teve controle para doenças transmissíveis por sangue. Mas a Aids atacou todas as classes e logo o controle foi feito nos bancos de sangue. Rapidamente se conseguiu também uma lei que garantisse a distribuição gratuita do medicamento para a Aids. A doença de Chagas, há 20 anos, também era um exemplo disso: o mapa da distribuição da doença coincidia exatamente com o mapa das pessoas que não votavam e eram analfabetas.
Agência FAPESP Por que é importante para o Brasil investir na pesquisa sobre fármacos para essas doenças?
Carlos Morel O Brasil tem uma posição singular: é um país em desenvolvimento que é afetado tanto pelas doenças de países pobres como pelas de países ricos. A indústria tem a oportunidade de lucrar com medicamentos feitos para os que podem pagar, como na Europa e nos Estados Unidos. Mas também precisamos de fármacos para a população que sofre com doenças tropicais e infecciosas. Só que, ao contrário dos países africanos e asiáticos, que também têm essas doenças, temos capacidade técnica para desenvolvimento desses fármacos. O fornecimento para os outros países que necessitam poderia impulsionar nossa indústria e resolver os problemas da população. Na verdade, vemos uma oportunidade única para o país nessa área.
Agência FAPESP E essa oportunidade está sendo aproveitada?
Carlos Morel Sentimos falta de uma política robusta de ciência e tenologia que estimule a inovação. Mas há uma série de iniciativas importantes em curso. Em 2006, foi lançado um programa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], em parceria com o Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, para dengue, doença de Chagas, lepra, malária, tuberculose e leishmaniose. A Fiocruz deverá lançar até começo do ano que vem novo medicamento contra malária, que está sendo testado no Acre e deverá ser exportado para toda a América Latina. Assinamos também um acordo com a empresa Genzyme para pesquisas sobre medicamentos para doenças negligenciadas.
Agência FAPESP Os problemas de infra-estrutura também são limitantes no Brasil?
Carlos Morel Historicamente, no Brasil, trata-se de um problema de falta de uma política industrial capaz de acoplar a ciência e a produção. A infra-estrutura, de fato, não é suficiente, porque a indústria farmacêutica, depois de um longo período de reserva de mercado, foi muito atingida pelo sistema de patentes. Mas o ponto central é que não há incentivo financeiro para combater as doenças negligenciadas.