Médicos no Canadá têm deparado com pacientes que apresentam sintomas semelhantes aos da doença de Creutzfeldt-Jakob, um mal raro e fatal que ataca o cérebro. Mas quando resolveram investigar o mal em mais detalhe, o que eles descobriram os deixou perplexos.
Quase dois anos atrás, Roger Ellis desmaiou em casa com uma convulsão em seu 40º aniversário de casamento.
Com 60 e poucos anos, Ellis, que nasceu e foi criado na bucólica península de Acadian, em New Brunswick, era uma pessoa saudável. Ele estava aproveitando sua aposentadoria após décadas trabalhando como mecânico industrial.
Seu filho, Steve Ellis, diz que depois daquele dia fatídico a saúde de seu pai piorou rapidamente.
“Ele teve delírios, alucinações, perda de peso, agressividade, fala repetitiva”, diz ele.
“A certa altura, ele não conseguia nem andar. No intervalo de três meses, médicos disseram acreditar que ele estava morrendo— mas ninguém sabia por quê.”
Os médicos de Roger Ellis primeiro suspeitaram da doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ). Trata-se de uma doença causada por proteínas chamadas de priões. A doença cerebral degenerativa fatal e rara faz com que os pacientes apresentem sintomas como falta de memória, mudanças de comportamento e dificuldades de coordenação.
Uma categoria conhecida da doença se chama Variante DCJ, que está associada à ingestão de carne contaminada com a doença da vaca louca. A DCJ também pertence a uma categoria mais ampla de doenças cerebrais como Alzheimer, Parkinson e ALS, em que as proteínas do sistema nervoso se deformam.
Mas o exame de DCJ de Ellis deu negativo, assim como a enxurrada de outros testes a que seus médicos o submeteram enquanto tentavam descobrir a causa de sua doença.
Seu filho diz que a equipe médica fez o possível para aliviar os diversos sintomas de seu pai, mas ainda havia um mistério: o que estava por trás da piora do quadro de Ellis?
Em março deste ano, Steve Ellis encontrou uma possível — embora parcial — resposta para o mal de seu pai.
A Rádio-Canadá, a emissora pública do país, obteve uma cópia de um memorando de saúde pública que foi enviado aos profissionais médicos da província alertando sobre um grupo de pacientes exibindo uma doença cerebral degenerativa desconhecida.
“A primeira coisa que eu disse foi: ‘É como meu pai'”, lembra ele.
Roger Ellis agora é considerado um dos afetados pela doença desconhecida e está sob os cuidados do neurologista Alier Marrero.
O neurologista do hospital Dr. Georges-L-Dumont University Hospital Center, da cidade de Moncton, diz que os médicos detectaram a doença pela primeira vez em 2015. Na época havia apenas um paciente — um “caso isolado e atípico”, diz ele.
Mas, desde então, surgiram mais pacientes como o primeiro — o suficiente para que agora os médicos pudessem identificar uma condição ou síndrome diferente “nunca vista antes”.
A província diz que está rastreando atualmente 48 casos, igualmente divididos entre homens e mulheres, em idades variando de 18 a 85 anos. Esses pacientes são da península Acadian e de áreas de Moncton de New Brunswick. Acredita-se que seis pessoas tenham morrido da doença.
A maioria dos pacientes começou a apresentar sintomas recentemente, a partir de 2018, embora acredite-se que um deles já os tenha apresentado em 2013.
O neurologista diz que os sintomas são variados.
A princípio, podem ocorrer alterações comportamentais como ansiedade, depressão e irritabilidade, além de dores inexplicáveis, dores musculares e espasmos em indivíduos saudáveis.
Frequentemente, os pacientes desenvolvem dificuldades para dormir — insônia grave ou hipersonia— e problemas de memória. Pode haver deficiências de linguagem que avançam rapidamente e que dificultam a comunicação e a manutenção de uma conversa fluente — problemas como gagueira ou repetição de palavras.
Outro sintoma é a perda rápida de peso e atrofia muscular, bem como distúrbios visuais e problemas de coordenação e espasmos musculares involuntários. Muitos pacientes precisam da ajuda de andadores ou cadeiras de rodas.
Alguns desenvolvem pesadelos ou alucinações auditivas ao acordar.
Vários pacientes apresentaram a Síndrome de Capgras, um distúrbio psiquiátrico em que uma pessoa acredita que alguém próximo a ela foi substituído por um impostor.
“É bastante perturbador porque, por exemplo, um paciente dizia à esposa: ‘Desculpe senhora, não podemos ir para a cama juntos, eu sou casado’ e mesmo quando a esposa dizia seu nome, ele respondia: ‘Você não é a verdadeira'”, conta o médico.
O neurologista do Canadá está liderando a investigação sobre a doença com a ajuda de uma equipe de pesquisadores e do órgão federal de saúde pública.
Os pacientes suspeitos passam por testes de priões e de condições genéticas, painéis que examinam doenças auto-imunes ou formas de câncer e exames para detectar vírus, bactérias, fungos, metais pesados e anticorpos anormais.
Eles são questionados sobre fatores ambientais, estilo de vida, viagens, histórico médico, comida e água. Eles são submetidos a punções espinhais para testar várias infecções e distúrbios possíveis.
Não há tratamento disponível contra as causas. O único tratamento possível é ajudar a aliviar o desconforto de alguns dos sintomas. Por enquanto, a teoria é que a doença é adquirida, não genética.
“Nossa primeira ideia comum é que há um elemento tóxico adquirido no ambiente desse paciente que desencadeia as mudanças degenerativas”, diz o neurologista.
O também neurologista, da Universidade de British Columbia, Neil Cashman, é um dos pesquisadores que está tentando desvendar o mistério médico.
Apesar dos pacientes não apresentarem vestígios de doenças por priões, a causa não foi completamente descartada, diz ele.
Outra teoria é a exposição crônica ao que é chamado de “excitotoxina”, como o ácido domóico. Uma excitotoxina foi associada a um incidente de intoxicação alimentar em 1987 por mexilhões contaminados com a toxina, na província vizinha da Ilha Prince Edward.
Junto com problemas gastrointestinais, cerca de um terço das pessoas afetadas apresentaram sintomas como perda de memória, tontura, confusão. Alguns pacientes entraram em coma e quatro morreram.
Cashman diz que eles também estão olhando para outra toxina — beta-metilamino-L-alanina (BMAA) — que foi classificada como de risco para o desenvolvimento de doenças como Alzheimer e Parkinson.
Alguns pesquisadores também acreditam que esta segunda toxina esteja ligada a uma doença neurodegenerativa documentada em uma população indígena no território da ilha de Guam, no Pacífico, nos EUA, em meados do século 20, e encontrada em sementes que faziam parte da dieta do grupo.
Cashman adverte que a lista atual de teorias “não está completa”.
“Temos que voltar aos primórdios, voltar à estaca zero”, diz ele. “Neste ponto, basicamente, nada pode ser excluído.”
Então, quantas pessoas mais podem ser afetadas por esta doença?
Marrero diz que é possível que seja um fenômeno mais amplo encontrado fora das duas regiões onde os pacientes foram identificados até agora (a península Acadian, com suas comunidades de pescadores e praias arenosas, e Moncton, um centro da cidade).
“Estamos vendo a ponta do iceberg? Talvez”, diz ele. “Espero que possamos entender isso rápido para que possamos impedir mais casos.”
Embora aqueles que vivam nas comunidades afetadas estejam compreensivelmente preocupados, Marrero exorta as pessoas a “trabalharem com esperança, não com medo. O medo paralisa”.
A condição de Roger Ellis se estabilizou desde a rápida progressão inicial, diz seu filho.
Ele está em um asilo especializado e precisa de ajuda para atividades diárias. Ele ainda tem problemas com a fala e o sono.
Steve Ellis, que dirige um grupo de apoio no Facebook para famílias afetadas pela doença, pede que o governo se comprometa com a transparência sobre a doença.
Acima de tudo, ele quer saber o que fez seu pai adoecer.
“Eu sei que eles estão trabalhando nisso, mas como isso aconteceu?”, pergunta.
“Como família, estamos cientes do fato de que ele provavelmente vai morrer por causa disso.”