Conforme os programas de vacinação contra covid-19 avançam em partes do mundo, principalmente nos países ricos, o mundo deve se dividir até o final do ano em zonas de risco — e o Brasil tende a ficar na vermelha, dizem cientistas britânicos ouvidos pela BBC News Brasil.
Segundo o virologista Julian Tang, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, a expectativa é de que nações europeias, da Oceania, Israel e partes da Ásia, como Cingapura e Coreia do Sul, restabeleçam comércio, turismo e viagens entre esses territórios a partir do meio do ano, possibilitando que suas economias voltem a girar.
Já países que não conseguirem concluir a vacinação da população e controlar o surgimento de variantes podem acabar isolados do resto do mundo, sendo classificados oficialmente ou informalmente como zonas de risco “amarelo” ou “vermelho”.
“Podemos ter uma divisão por zonas de risco. Por exemplo, o sudeste da Ásia e a Europa serão verdes. Laranja é Índia e parte da África. E vermelho pode ser África do Sul, Brasil e Estados Unidos, onde vemos altas taxas de transmissão e vacinação insuficiente”, exemplifica Tang.
“Isso pode existir oficialmente, em sites de viagem ou mesmo na cabeça das pessoas.”
As nações que tendem a sofrer maior isolamento são as que não adotaram de maneira sistemática medidas de controle da covid-19 nem negociaram vacinas antecipadamente, como é o caso do Brasil, que totalizou na quarta (10) o recorde de 2.286 mortes em 24 horas e é visto por pesquisadores como potencial celeiro de variantes.
Até o momento, cerca de 9 milhões de pessoas receberam ao menos uma dose de vacina no país. O número pode parecer alto, mas ele representa só 4,26% da população brasileira.
Hoje o Brasil só tem doses das vacinas Oxford-AstraZeneca, adquiridas pela Fiocruz, e de Coronavac, do Instituto Butantan, que seriam insuficientes para imunizar toda população com mais de 18 anos ainda em 2020. Na segunda-feira (15/03), o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, prometeu a compra de mais de 100 milhões de doses de vacinas da Pfizer e da Janssen.
Países pobres, que não têm recursos para adquirir imunizantes, também devem sofrer com o isolamento, que deve aprofundar a desigualdade social entre os hemisférios norte e sul, avalia o professor Peter Baker, vice-diretor do departamento de Saúde Global e Desenvolvimento da universidade Imperial College London, no Reino Unido.
“Vamos terminar o ano com um sistema de divisão em zonas, com partes do mundo vacinadas e partes não”, disse à BBC News Brasil.
“E se decidirmos adotar políticas baseadas na imunidade adquirida pelos países por meio da vacinação, veremos limitações a direitos, viagens e à economia de países pobres que já estão tendo dificuldades de acesso a vacinas.”
Retomada do turismo nas zonas verdes
Atualmente, os países de onde surgiram variantes preocupantes do coronavírus — Brasil, África do Sul e Reino Unido — são os que somam mais restrições de entrada em outras nações, segundo levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo.
Mas Reino Unido pode sair dessa “zona vermelha”, já que depois do lockdown em vigor desde o início de janeiro a taxa de infecção caiu em dois terços. A previsão é que toda a população com mais de 18 anos receba pelo menos uma dose de vacina até 31 de julho.
Nesse período, outras nações europeias e asiáticas já deverão ter, também, alcançado o patamar de 60% a 70% da população vacinada, percentual necessário para que a circulação do vírus comece a desacelerar mesmo na ausência de medidas de confinamento.
Para o professor Julian Tang, é provável que essas nações na “zona verde” mantenham ao longo de todo o ano e parte de 2022 restrições de voos para regiões do mundo que não conseguiram vacinar suas populações.
Mas, mesmo que isso não ocorra, diz ele, a procura por viagens para países na zona vermelha deve se reduzir naturalmente diante dos riscos. Ou seja, países não-vacinados e com taxas ainda altas de infecção podem acabar sendo isolados pelo resto do mundo, principalmente para conter o risco de que novas variantes do coronavírus saiam desses territórios e se espalhem em grandes quantidades.
“O que acho que vai acontecer é que as pessoas vão se sentir confortáveis em viajar entre países que vacinaram suas populações, como entre Reino Unido e Europa, ou Reino Unido e sul da Ásia, Austrália, Nova Zelândia”, avalia o professor da Universidade de Leicester.
“Mas é possível que essas pessoas não se disponham a viajar para regiões como Brasil, por exemplo, porque o vírus não está sendo controlado com a vacinação e, por causa, disso pode surgir uma variante resistente às vacinas.”
‘Passaporte verde’
A realidade de Israel, país com melhor ritmo de vacinação até o momento, dá pistas de como a divisão a nível global deve ocorrer. Segundo dados da plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford (Reino Unido), o país tem hoje a maior taxa de vacinação do mundo, com 98,85 doses administradas por cada 100 habitantes.
A título de comparação, a taxa brasileira é de 4,58 doses administradas por cada 100 habitantes.
Em Israel, não é obrigatório vacinar, mas, na prática, as pessoas que não se imunizarem acabarão isoladas do restante da população, sem poder frequentar a maioria dos espaços públicos. Isso porque as pessoas vacinadas lá recebem o chamado “passaporte verde” — um documento eletrônico que permite acesso a restaurantes, academias de ginástica, teatros, cinemas e outros estabelecimentos.
O país iniciou a abertura gradual da economia depois de três lockdowns com medidas duras de confinamento. De certa maneira, essa divisão entre vacinados e não-vacinados, com o segundo grupo sendo isolado, deve se repetir em escala global.
“Podemos esperar que a maioria dos países ricos vacinem suas populações esse ano. Mas a expectativa é que a maior parte do mundo não consiga fazer isso. E essas duas coisas estão, infelizmente, interligadas”, diz o professor Peter Baker, da Imperial College London.
“Os países ricos estão comprando doses de vacinas além do necessário para suas populações e isso está limitando o acesso de outros países. E, em nações como Tanzânia e Brasil, a mensagem política está afetando a procura por vacinas, o que é um problema”, completa o professor britânico.
Segundo os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil, o maior problema em haver partes do mundo sem imunização em massa contra covid-19 é o surgimento de variantes que resistam ao efeito das vacinas.
Descontrole do vírus num país é ameaça global
O pesquisador Charlie Whittaker, da Imperial College London, alerta que, ainda que restrições de viagem entre países sejam impostas, o mundo só estará totalmente protegido da covid-19 se todas as nações imunizarem suas populações.
Ele liderou uma pesquisa sobre a variante de Manaus que revelou que ela é entre 1,4 e 2,2 vezes mais transmissível que o vírus original. O estudo mostrou ainda que essa variante, apelidada de P.1, é capaz de evadir o sistema imune de infecções prévias em 25% a 61% dos casos. Isso significa que pode reinfectar facilmente quem já teve covid-19.
Embora muitos países tenham impedido voos vindos do Brasil e imposto quarentenas e testes de covid-19 a quem desembarcar vindo de lá, a P.1 já foi detectada em 25 países. Já a variante do Reino Unido se espalhou nos EUA e a da África do Sul chegou à Europa.
“Ninguém está seguro enquanto todos não estivermos seguros. E garantir que estamos seguros significa limitar a chance de variantes surgirem. Medidas de controle são úteis para alcançar isso, mas talvez mais importante ainda seja garantir uma estratégia global equitativa de vacinação. Isso significa que nenhum país deve ser deixado para trás”, disse à Whittaker à BBC News Brasil.
E para que o hemisfério sul não seja deixado para trás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem defendendo que países ricos doem seus excedentes de vacinas a países pobres e contribuam financeiramente com a compra de imunizantes para regiões mais afetadas pela covid-19.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a declarar que o “mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico”, ao criticar o fato de jovens já estarem recebendo vacina contra covid-19 em países ricos, enquanto idosos de países pobres poderão passar 2021 e até 2022 sem acesso à primeira dose.
Deixar países para trás vai custar caro para todos
O professor de Saúde Global Peter Baker, da Imperial College London, alerta que deixar o vírus descontrolado em países emergentes e pobres pode gerar custos humanos e financeiros para todas as nações, já que novas variantes, totalmente resistentes às vacinas, podem surgir.
Se isso ocorrer, terceiras e quartas doses das vacinas existentes hoje terão que ser desenvolvidas e administradas em todas as populações.
“Em locais de descontrole da infecção e baixas taxas de vacinação, provavelmente uma variante fortemente resistente às vacinas vai aparecer. Aí teremos que reajustar as nossas vacinas, refazer pesquisas e refazer os processos de regulação”, diz.
“É preocupante ver que vários países do sul global foram deixados para trás porque países desenvolvidos compraram a grande maioria das vacinas e o acesso é desafiador. As experiências no Brasil, Reino Unido e África do Sul com variantes mostram que o vírus não respeita barreiras internacionais. Para solucionar esse problema, precisamos de uma iniciativa global”, completa o pesquisador Charlie Whittaker.