Mudanças climáticas, intervenção humana em áreas preservadas, caça e tráfico de animais silvestres e má condições de higiene em criadouros são fatores que facilitam o aparecimento de novas doenças
Pandemias como a que estamos vivendo, infelizmente, já eram esperadas por autoridades e cientistas. Tudo por causa do estilo de vida contemporâneo. A destruição de habitats naturais, manuseio de carne sem os protocolos de higiene, consumo de animais silvestres, criação intensiva de animais domésticos e mudanças climáticas são apontados como os principais causadores de pandemias, epidemias e surtos epidêmicos no mundo. E a fórmula é simples: quanto mais nos aproximamos de áreas preservadas, mais entramos em contato com patógenos nunca antes vistos.
É aí que surge o fenômeno conhecido como spillover (termo em inglês que pode ser traduzido como transbordamento) que torna-se cada vez mais frequente, e aqui vamos entender o porquê. O spillover é usado em Ecologia para dizer que um vírus ou micróbio conseguiu se adaptar e ir de um hospedeiro para outro. E foi assim, migrando dos morcegos para os seres humanos (tendo, talvez, os pangolés como intermediários) que o SARS-CoV-2 atingiu esses números impressionantes.
A simulação
Nova York, outubro de 2019. Especialistas em saúde, autoridades governamentais e empresários se reúnem para planejar uma resposta a uma epidemia global. Um desconhecido coronavírus, chamado CAPS (Síndrome Pulmonar Associada ao Coronavírus, em português), começou com porcos no Brasil, contaminou agricultores e, em 18 meses, já havia se espalhado para várias partes do mundo. O saldo dessa pandemia deixou as autoridades em alerta: 65 milhões de pessoas perderam a vida, além de desencadear uma crise financeira global sem precedentes.
Para a nossa sorte, esse foi somente um exercício de treinamento, coordenado pelo Centro para Segurança de Saúde da Universidade John Hopkins, em parceira com o Fórum Econômico Mundial e a Fundação Bill e Melinda Gates. O objetivo foi tentar prever a nossa reação a um possível surto de um vírus nunca visto. Depois de três horas e meia, o grupo de 15 pessoas terminou a simulação. Ninguém conseguiu conter a propagação do vírus, apesar de todos os esforços.
Apenas um mês após a simulação, o governo chinês confirmou o primeiro caso de covid-19 em Wuhan, província de Hubei, na China. Ao que tudo indica, o SARS-CoV-2, vírus causador da doença, passou de animais para pessoas a partir do mercado central de Wuhan e se espalhou para vários países. O aumento no número de casos da doença e a disseminação global fizeram a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar pandemia de coronavírus em 11 de março. Desde então, o mundo tem assistido a milhares de óbitos e o Brasil, especificamente, já contava com 133 mil mortos e mais de 4 milhões de casos confirmados até o fechamento da reportagem.
Apesar das várias notícias em redes sociais afirmarem que os responsáveis pelo evento teriam previsto a pandemia de coronavírus, o Centro para a Segurança de Saúde da Universidade Johns Hopkins divulgou, em 24 de janeiro de 2020, uma resposta às publicações viralizadas. “Para esclarecer, o Centro para a Segurança de Saúde e seus sócios não fizeram uma previsão durante o exercício de simulação. Para o cenário, desenhamos um modelo de pandemia de coronavírus fictício, mas declaramos explicitamente que não se tratava de uma previsão.”
Há bilhões de anos…
Os vírus são organismos microscópicos, acelulares, formados por ácido nucleico (DNA ou RNA) envolvidos por uma cápsula proteica, chamada capsídeo. Há evidências que eles tenham surgido junto com as primeiras formas de vida na Terra, há mais ou menos 4 bilhões de anos. Eles se utilizam da maquinaria celular para se multiplicar. Em uma primeira etapa, esses parasitas se aderem à parede da célula e se ligam aos receptores presentes na membrana. Depois, eles inserem o seu material genético e passam a controlar o metabolismo da célula infectada, inativando a maior parte dos genes. Por último, já em número maior, eles passam a infectar as outras células.
Patrícia Beltrão Braga, virologista, pesquisadora e professora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP costuma dizer que a replicação viral se assemelha ao trabalho realizado em uma fábrica de automóveis. “Temos várias linhas de montagem e cada uma delas faz uma peça específica: o motor, a carroceria, a parte interna do carro… ao final, todas seguem para um único setor, que une as peças e finaliza o produto”, explica a pesquisadora ao Jornal da USP.
Durante esse processo, podem ocorrer as mutações, que são as alterações no material genético do vírus. Muitas delas são incorporadas às espécies e passam adiante, em um processo de seleção natural. Cientistas acreditam que o genoma humano é formado por milhões de sequências de DNA de vírus antigos, algo como fósseis moleculares. Vincent Racaniello, professor de microbiologia e imunologia explicou, durante uma palestra na Universidade de Columbia, em 2016, que “nós carregamos genomas de vírus no nosso material genético fruto do processo de evolução, o que confere muitas vantagens à nossa espécie”.
Já outras alterações no DNA viral dão aos vírus a capacidade de infectar células que eles não conseguiam antes. “E a de migrar para outros hospedeiros”, explica a virologista.
Transpondo barreiras
Para que doenças migrem de uma espécie a outra, um patógeno precisa superar uma série de peneiras, como por exemplo, a quantidade de vírus disponível ao hospedeiro (também conhecido como pressão do patógeno) e o comportamento entre humano e vetor, que determina probabilidade, rota e dose de exposição. “Se temos um maior contato com animais – seja por meio da caça ou da criação – e não tomamos as devidas precauções sanitárias, os patógenos vencem mais uma barreira também”, afirma Marco Mello, biólogo e professor do Instituto de Biociências (IB) da USP. “O spillover é um fenômeno frequente na natureza, mas a migração de animais e humanos é mais rara”, explica Mello. “Febre amarela, ebola e HIV são exemplos de spillover e que já causaram muitas mortes.”
A percepção de que o fenômeno vem aumentando deve-se, segundo Mello, a maior disponibilidade de ferramentas que preveem epidemias e surtos epidêmicos e, ao mesmo tempo, a vários outros fatores, como o aumento da população do planeta, a velocidade com que as pessoas se locomovem e a destruição de ambientes naturais. “Além disso, quanto mais gente no mundo, maior a quantidade de animais de criação”, diz o biólogo.
No caso do SARS-CoV-2, as evidências indicam que o marco zero da pandemia foi o mercado de animais vivos em Wuhan, na China. “No local, temos a mistura de animal doméstico com animal silvestre caçado, presença de seres humanos, todos em uma densidade altíssima e com péssimas condições de higiene”, pontua Mello.
Ainda há tempo
Segundo os dois especialistas que falaram ao Jornal da USP, o que precisamos, de imediato, é a implantação de medidas de contenção dessa e de futuras pandemias. “Os protocolos internacionais, bem como federais, estaduais e municipais precisam falar a mesma língua”, pontua Mello. “Precisamos, também, fortalecer os organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, para que haja uma mudança nas práticas econômicas.”
Já Patrícia acredita ser difícil mudar os hábitos da população. “Atividades que consideramos básicas, como lavar as mãos várias vezes ao dia, antes das refeições, depois de ir ao banheiro, depende de educação, e cabe aos mais velhos ensinar as crianças a realizar essas atividades”, explica a virologista. “Mas o mais importante, e que fará a diferença, é o respeito ao meio ambiente”, ressalta a pesquisadora. Respeitar os limites entre a área silvestre e áreas rurais seria uma medida importante.
Os pesquisadores apontam, também, para a necessidade de um controle sanitário mais rígido em portos e aeroportos. “Se o cidadão tiver alguma reunião importante em outro lugar, mas no embarque apresentar sintomas como febre ou algo preocupante, simplesmente não embarca”, enfatiza Mello.
Os mercados de animais vivos precisam ser fechados, segundo os pesquisadores entrevistados pelo Jornal da USP. “No Brasil temos vários deles e é comum vermos animais silvestres sendo comercializados”, relata Mello. “E, em vários países, a existência deles faz parte da cultura local. É uma catástrofe.”
Patrícia e Mello concordam que devemos conviver com o SARS-CoV-2 por dois ou três anos ainda, mas que o cenário mudará quando uma vacina chegar ao mercado. “Esse é o mundo sem uma vacina, especificamente. Imagine se não houvesse as outras? ”, finaliza Patrícia. É para se pensar.
Mais informações: e-mail marmello@usp.br, com Marco Mello; e-mail: patriciacbbbraga@usp.br, com Patrícia Beltrão Braga
Imagem destacada – Arte de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Peter Neumann/Unsplash e Pixabay