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Contato anterior com outros tipos de coronavírus influencia gravidade da covid-19, sugere estudo

Histórico de exposições de cada pessoa a outros tipos de coronavírus pode influenciar na severidade da covid-19.

Forma severa da covid-19 atinge mais idosos que jovens, o que pode ser devido à reatividade cruzada com outros vírus da família, que causam o resfriado comum.

Uma pesquisa internacional com participação de cientistas da USP analisou o possível impacto no grau de severidade da covid-19 do histórico de infecções causadas por coronavírus endêmicos – outras espécies de coronavírus, que em sua grande maioria causam apenas resfriados. Uma das possibilidades levantadas é de que a exposição prévia aos outros coronavírus provoque uma reatividade cruzada com o SARS-CoV-2, vírus causador da covid-19, e que esta pode ser benéfica ou prejudicial dependendo do número de exposições, o que está relacionado à idade. Assim, pacientes mais velhos tenderiam a ter uma forma mais grave da doença do que os mais jovens. Os resultados do artigo, que ainda está em revisão, estão disponíveis na plataforma MedRxiV (preprint).

De acordo com Daniel Santa Cruz Damineli, pesquisador na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) que atua na área de Biologia Computacional, a ideia central das investigações era entender por que os coronavírus endêmicos atacam mais a população infantil e menos as pessoas mais velhas, e com o vírus da covid-19 acontece o contrário. “A população poderia ter uma suscetibilidade ao novo coronavírus diferente de acordo com a idade e queríamos explorar o porquê”, contou ao Jornal da USP.

O estudo foi feito no Departamento de Pediatria, dentro do Laboratório de Genômica Pediátrica, que é coordenado pelo professor Carlos Alberto Moreira Filho, da FMUSP, em colaboração com o Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP.

Para buscar respostas, os cientistas simularam uma equação que descreve a severidade da covid-19 de acordo com a exposição a infecções causadas por coronavírus endêmicos. Os dados que alimentaram o modelo são de países da União Europeia e do Reino Unido.

Os resultados mostraram que a heterogeneidade nos históricos de exposição individual a coronavírus endêmicos consegue explicar os padrões de idade e hospitalizações causados pela covid-19. Uma das hipóteses levantadas é de que as primeiras infecções com outros tipos de coronavírus conferem uma proteção inicial ao SARS-CoV-2, porque ambos os vírus possuem similaridades em proteínas estruturais. Essa proteção, conhecida como reatividade cruzada ou heterotípica, que acontece quando um indivíduo responde a um patógeno com memória imunológica de outro, pode ser maléfica ao longo do tempo porque o nosso organismo começa a especializar a resposta imune para os coronavírus endêmicos, o que dificultaria o combate ao vírus da covid-19.

A relação com a idade baseia-se na probabilidade de pessoas mais velhas já terem tido mais contato com diversos outros tipos de coronavírus. “Isso poderia tanto conferir uma proteção inicial como levar a uma piora conforme você fica mais velho”, detalhou Damineli. Uma criança, por exemplo, que teve pouco contato com coronavírus endêmicos pode desenvolver uma resposta heterotípica benéfica quando exposta ao vírus da covid-19, o que faria a doença menos severa.

Outro resultado apontado pelo modelo é a diferença na severidade da covid-19 dentro da própria população infantil. Segundo o pesquisador, fazendo-se comparações entre a população pediátrica, os mais jovens têm uma severidade ligeiramente maior ao SARS-CoV-2. Isso poderia ser explicado pelo fato de os infantes não terem tido contato com os coronavírus endêmicos, que iriam conferir uma proteção inicial, através da reatividade cruzada, ao vírus da covid-19. “Esse dado mostra uma característica interessante do modelo: não é um perfil monotônico, pois nem sempre ele aumenta. Há uma queda inicial e depois uma piora bem grande com a idade”, explicou.

Hipótese para o aumento da severidade

A reatividade cruzada é um mecanismo complexo do sistema imunológico que nem sempre pode ser benéfico. “Não quer dizer que a reatividade cruzada protege, ela apenas reage, e essa reação pode ser pior, inclusive. No modelo que desenvolvemos, a ideia é que ela é inicialmente melhor, se há uma exposição ou poucas, e vai piorando porque você vai refinando e deixando a resposta imune mais específica para os outros tipos de coronavírus”, explicou Daniel Santa Cruz Damineli – Foto: Pixabay

O mecanismo de piora da reatividade cruzada não está contido no modelo, entretanto Damineli explica que existe uma hipótese, levantada pelos pesquisadores, para explicar o fenômeno.

Essa suposição está relacionada a um artifício para sabotar o sistema imune: o ADE (Antibody-dependent enhancement), sigla para potenciação dependente de anticorpos. O que acontece é que a imunidade contra um subtipo de vírus acaba atrapalhando a defesa contra outro subtipo. Neste caso, a defesa contra coronavírus endêmicos, que fica mais especializada e refinada com o tempo, atrapalharia o sistema imune no momento de montar uma reação contra o vírus da covid-19. “Se você tem um monte de anticorpos não neutralizantes cobrindo o vírus, você cria uma forma nova do vírus infectar outras células”, explicou o pesquisador. Esse mecanismo já é conhecido para SARS, MERS e dengue, por exemplo.

Com esta pesquisa, os cientistas chamam atenção para a necessidade de se estudar mais detalhadamente a reatividade cruzada. “Precisamos entender como anticorpos que foram desenvolvidos ao coronavírus endêmicos reagem ao SARS-CoV-2. Se não entendermos isso, podemos estar perdendo um mecanismo que explica grande parte do que está acontecendo na pandemia”, finalizou Damineli.

A pesquisa Potential impact of individual exposure histories to endemic human coronaviruses on age-dependence in severity of COVID-19, disponível em preprint, já está passando pela revisão por pares para ser publicada.

Mais informações: e-mail daniel.damineli@fm.usp.br, com Daniel Santa Cruz Damineli