Conceito ampliado de saúde pode ajudar a saber se uma população é ou não saudável

 Em todo o mundo, 2,8 milhões de pessoas adultas morrem por problemas decorrentes do sobrepeso e da obesidade. Em 2009, 1,7 milhão de pessoas morreram por causa de uma doença antiga, mas que até hoje vitima muita gente: a tuberculose. Pelo Datasus, no ano de 2007, mais de 1,6 mil crianças menores de 5 anos morreram em consequência de diarreia aguda. Dados como os transcritos acima ajudam a revelar condições de saúde de populações, mas se não são encarados como parte de um contexto mais amplo podem ser apenas números. 

Formulado em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, um conceito pode ajudar a entender o que existe por trás dos milhares e milhões acima – é o conceito ampliado de saúde. Aprovado pelos delegados da conferência, o conceito inclui alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde como condições necessárias para se garantir a saúde. "É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida", diz o relatório final. Na próxima quinta-feira (7/4) se comemora o Dia Mundial da Saúde. Mas como saber se uma população é ou não saudável? O conceito ampliado de saúde pode ajudar.

A resposta à questão não é simples, entretanto, alguns dados da realidade brasileira podem ajudar. No início do ano, as passagens de ônibus aumentaram em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, o reajuste foi de 11,11%. Diante disso, muitas pessoas foram às ruas protestar e sofreram repressão policial. A cesta básica também aumentou em janeiro, de acordo com um estudo do Dieese, em 14 das 17 capitais. Em relação à habitação, pelos dados divulgados recentemente do Censo de 2010 foi possível saber que há 6,7 milhões de domicílios vagos no país, enquanto o déficit habitacional, de acordo com o próprio Ministério das Cidades, era de 5,8 milhões em 2008.

O acesso à terra no Brasil também é muito desigual: 2,8% das propriedades rurais brasileiras são latifúndios e ocupam mais da metade da extensão territorial agricultável do país (56,7%), enquanto as pequenas propriedades ocupam apenas 7,9% da área total. O problema se agrava quando se cruza este dado com o da segurança alimentar. Como mostrou uma reportagem publicada no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), mais de 70% do que comem os brasileiros vem da agricultura familiar, portanto, de pequenas propriedades.  Os exemplos dados acima são de indicadores nas áreas de transporte, alimentação, habitação e acesso à terra, alguns dos itens presentes no conceito ampliado de saúde, portanto, dão pequenas pistas sobre a quantas anda a saúde dos brasileiros.

A professora da EPSJV e sanitarista Angélica Fonseca explica que o conceito ampliado de saúde foi formulado a partir de desdobramentos de lutas de militantes e profissionais da área desde décadas anteriores que tentavam ampliar a compreensão sobre saúde. "Ao adotar este conceito ampliado, há um deslocamento do que era o trabalho central na saúde, que era sustentado pelo conhecimento médico, que é também o trabalho da enfermagem mais clínica e que atua com uma dimensão mais biológica e curativa da compreensão de saúde. Então, com a ampliação, se traz todo o universo de ações da promoção, da prevenção e se convoca um olhar para refletir sobre determinantes sociais e interações das ações de saúde em outros níveis da sociedade e com outros setores", diz.

De acordo com a sanitarista, dessa forma há uma reivindicação de articulação da saúde com outros setores, como a educação, o transporte e o trabalho, por exemplo, e, em última dimensão, colocando a saúde também no campo da economia. "Pensar a saúde também como um elemento que se torna condição das situações de vida e se relaciona com a questão da distribuição de riqueza. Isso põe outra perspectiva para o sistema", afirma.

O médico e professor de saúde pública da Unicamp Gastão Wagner também considera que esta concepção tem repercussões teóricas e práticas muitos importantes. "No Brasil, a constituição da área de saúde coletiva é feita a partir de uma concepção ampliada de saúde que valoriza o tema da determinação social do processo de saúde e doença. Isso fez com que o Brasil criasse outra visão da saúde pública e das próprias práticas médicas, clínicas a partir desse conceito ampliado", comenta.

O professor explica que os determinantes sociais são os fundadores dessa visão ampliada. Ele conta que desde a década de 1960 vários cientistas sociais, médicos sanitaristas, enfermeiros e outros profissionais, por meio de estudos e reflexões, foram criticando a visão positivista da saúde, muito centrada na doença, e construindo a saúde coletiva. Ao mesmo tempo, em outros países havia movimentos também questionadores dessa visão tradicional. O professor detalha que há ainda controvérsias sobre a concepção ampliada. "A medicina baseada em evidências ainda está muito voltada ao ponto de vista orgânico, de medicamentos, ao ponto de vista matemático, estatístico. Por um lado, ainda há uma centralidade da biomedicina. Existem também alguns setores da saúde coletiva que consideram que a determinação social do processo de saúde e doença daria conta, sozinha, de uma visão ampliada de saúde. Eu acredito que temos que pensar em tudo: nos planos sociais, no plano de influência da afetividade e subjetividade e no plano orgânico também, pois há fatores orgânicos – genéticos, de idade e outros – que influenciam a saúde", sintetiza.

O conceito no SUS

Mas e no Sistema Único de Saúde (SUS), esta concepção ampliada é predominante? O SUS foi criado pela Constituição de 1988, portanto, após a 8ª Conferência de Saúde e com forte incidência do movimento pela reforma sanitária. "O SUS tem uma especificidade positiva: além de garantir o direito à saúde, por meio do acesso, nós pensamos modelos de atenção e de organização do sistema com o referencial da saúde ampliada. Então, essa organização é radical porque pretende transformar o paradigma e as práticas do trabalho em saúde", opina Wagner.

O professor ressalva, no entanto, que o que se criou foi uma tensão paradigmática – ou seja, uma disputa de modelos distintos de atenção. Ele exemplifica: "A política de Aids segue mais uma visão ampliada da saúde, assim como a Estratégia da Saúde da Família e a saúde mental,. Mas a nossa estrutura hospitalar  tem uma hegemonia ainda do paradigma biomédico, que não tem uma visão ampliada do processo saúde e doença".

Um outro problema no caminho do conceito ampliado de saúde, para o professor, é a formação dos profissionais de saúde, que segundo ele, são formados no paradigma antigo. "Todos nós somos formados num paradigma biomédico, bio-odontológico, bio-fisioterapêutico. O conceito ampliado está na Constituição e o documento da conferência definiu a visão ampliada da saúde e do direito universal à saúde, da responsabilidade do Estado e da sociedade, mas, ainda assim, é difícilé levar adiante essa prática que implica reformas curriculares, reformulação da formação e dos modelos de atenção", propõe ele.

Para Angélica, uma consequência positiva do conceito ampliado é a incorporação de muitos outros trabalhadores, não apenas de formação em saúde, mas também profissionais como geógrafos, demógrafos, cientistas sociais e até profissionais de comunicação. "Hoje, quando se fala de uma equipe multidisciplinar de saúde, isso não surpreende, está mais do que bem aceito, está inteiramente validado. E isso permite agir com mais qualidade", diz.

Deturpação do conceito

Os dois professores alertam para a deturpação do conceito, de forma, por exemplo, a diminuir recursos públicos da saúde, em uma tentativa de incorporar o que é gasto em áreas citadas no conceito ampliado – habitação e saneamento, por exemplo – como sendo gastos em saúde. Wagner explica que há uma tentativa de regulamentar a Emenda Constitucional 29, que trata dos recursos para o SUS, de forma que qualquer investimento social seja considerado investimento para a saúde. "É uma interpretação falaciosa, porque o que a Emenda 29 regulamenta são os investimentos com a atenção à saúde. Se não, todo programa habitacional, por exemplo, poderia entrar na saúde, porque é fundamental para a saúde. Mas é um uso demagógico e falacioso do conceito", questiona.

O professor completa que há ainda outra tentativa grave de deturpação. A partir da ideia de que os determinantes sociais são os mais importantes na definição da saúde, afirma-se que o Brasil não precisaria investir em problemas específicos de saúde, como a Aids, por exemplo, e deveria jogar todos os recursos na promoção. "Vários documentos do Banco Mundial dos anos 1990 e 2000 criticaram o Brasil por gastar muitos recursos com atenção individual em problemas como Aids, saúde mental e câncer, fazendo uma restrição do direito à saúde. Então, o conceito pode ser usado também dessa forma deturpada", critica.

A saúde para as pessoas

A história e o texto do conceito ampliado de saúde podem não ser conhecidos pela maioria das pessoas, entretanto, para Angélica, a vivência dele é cotidiana. "As pessoas vivem a experiência da saúde relacionada a outras dimensões da sua existência. Elas dizem: ‘Eu estou gorda porque não tenho dinheiro e nem tempo, então, só como besteira’, ou então: ‘Eu estou muito nervosa porque estou com muitos problemas no trabalho’. Então, de uma forma muito mais pragmática, elas são capazes de estabelecer essa relação, sobretudo por meio de queixas", diz.

A sanitarista ressalta, no entanto, que ainda há uma compreensão muito forte de que é o médico que sempre dará a resposta para os problemas de saúde. "Essa compreensão é evidentemente incentivada por uma sociedade medicalizada, que constrói um imaginário de que é possível dar respostas por meio de medicamentos e intervenções muito específicas, que faz você achar que, se tiver um plano de saúde, qualquer doença será detectada por meio de exames sofisticados", diz. A professora completa que, associada a isso, há uma tentativa constante de culpabilização do indivíduo, como se a responsabilidade pelo processo de adoecimento fosse apenas de cada pessoa.

Wagner reforça que uma dimensão do conceito ampliado é também a participação das pessoas, tanto no auto-cuidado, quanto no projeto terapêutico. "Propomos que no hospital haja a clínica compartilhada, que é a equipe de saúde deliberando em conjunto o projeto terapêutico com o paciente. Por exemplo, alguém que tenha um problema crônico, como diabetes, precisa se apropriar desse conhecimento – o que é ter diabetes, qual o risco, o que pode decorrer do uso da insulina, que procedimentos podem ser feitos em casa, quando deve procurar a urgência. Então, é uma prática nova de envolvimento do usuário não apenas no conselho [conselhos de saúde, previstos na Constituição], na deliberação macro, mas nesse cotidiano. Isso é resultado dessa visão ampliada de que sem o sujeito não se faz saúde", detalha.

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