“A expressão dos sentimentos pela face é uma das habilidades mais singulares do ser humano, o que torna a perda dos movimentos dessa musculatura bastante angustiante.” Com essas palavras, a médica Raquel Salomone sintetizou a motivação do estudo da regeneração do nervo facial por meio de células-tronco, com o qual obteve, no fim de 2012, seu título de doutora.
Enviado ao Congresso Mundial de Otorrinolaringologia, em Seul, na Coréia do Sul, o trabalho recebeu, em julho último, o prêmio Jovem Cientista, conferido pelo evento.
O estudo “Avaliação da regeneração do nervo facial de ratos após a implantação de células-tronco derivadas do estroma de medula óssea diferenciadas in vitro” foi orientado por Ricardo Ferreira Bento, professor titular do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), e contou com apoio da FAPESP.
A proposta foi buscar uma solução para a lesão do sétimo nervo do crânio, causada por traumas ou vírus, que têm como consequência a paralisia e a decorrente assimetria da face.
“Isso traz gravíssimos transtornos para a pessoa afetada, como a incapacidade de piscar o olho, o que pode ocasionar úlcera de córnea e cegueira; a impossibilidade de controlar as glândulas salivares e comer; a perda de sensibilidade do pavilhão auricular e do ouvido externo; além da deformidade estética, com todo o seu impacto psicológico”, disse Salomone à Agência FAPESP.
A reconstrução cirúrgica do nervo tem resultados limitados. Paralisia residual, hipotonia (diminuição do tônus muscular) e sincinesia (associação de movimentos involuntários aos movimentos voluntários) são algumas das sequelas.
“O que mais me instigou, e sinceramente ainda me tira o sono, foi constatar que, mesmo nas mãos dos melhores cirurgiões, os resultados eram tão insatisfatórios. Por que uns pacientes evoluíam bem e outros não? Por que os tratamentos existentes surtiam efeito para uns e não para outros? Eu queria poder fazer algo para ajudar. Foi isso que impulsionou meu estudo”, disse Salomone, que é supervisora do ambulatório de Paralisia Facial Periférica e médica otorrinolaringologista do Hospital das Clínicas da FM-USP.
Sabe-se de longa data que os axônios, que constituem os nervos, são revestidos por uma espécie de capa, formada pelas chamadas células de Schwann. São essas células que fornecem ao nervo todo o suporte de que ele necessita, como os fatores de crescimento, entre outros. A regeneração do nervo depende, portanto, criticamente dessa estrutura celular. O problema é que as células de Schwann são escassas no organismo. Para cobrir com elas um nervo lesionado, seria necessário descobrir outro.
“Pensamos em utilizar células-tronco para suprir essa lacuna. Como se sabe, as células-tronco podem virar qualquer tipo de célula, quando devidamente estimuladas. Então, nossa pesquisa foi investigar como as células-tronco, fazendo o papel de células de Schwann, poderiam favorecer a regeneração do nervo lesionado”, disse Salomone.
O estudo foi feito em modelos animais (ratos), submetidos a neurotmese. Esse procedimento consiste em cortar um pedaço do nervo e deixar um espaço intervalar entre as duas partes remanescentes. Trata-se do pior tipo de lesão que pode ocorrer, muito mais grave do que os casos clínicos predominantes. A ideia foi que se as células-tronco fossem eficazes nesse caso extremo, com mais motivo o seriam nas lesões usuais.
Os animais foram divididos em quatro lotes. No primeiro, as duas partes remanescentes do nervo seccionado foram ligadas por um tubo de silicone vazio; no segundo, o tubo foi preenchido com um gel acelular; no terceiro, com células-tronco não diferenciadas; e no quarto, finalmente, com células-tronco já diferenciadas em células de Schwann.
“Constatamos que todos os animais nos quais foram implantadas células-tronco (indiferenciadas ou já diferenciadas) tiveram melhora muito mais expressiva do que aqueles que receberam o tubo vazio ou o tubo preenchido apenas com gel. Confirmou-se, então, a nossa hipótese de que as células-tronco podem realmente contribuir para a regeneração do nervo”, disse Salomone.
Mas o experimento trouxe uma surpresa: as células-tronco indiferenciadas tiveram melhor desempenho do que as já diferenciadas. “A conclusão a que chegamos foi que isso se devia à presença do tubo de silicone. Por serem capazes de desempenhar múltiplas funções, as células de Schwann precisam de um maior substrato para sobreviver – o que foi dificultado pelo tubo. Já as indiferenciadas mostraram-se mais capazes de sobreviver e atuar em condições adversas”, disse Salomone.
O artigo resultante da tese foi publicado na revista Muscle & Nerve. A referência completa e o abstract podem ser acessados em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23824709.
Novos projetos
Natural de São Paulo, mas graduada em Medicina pela Universidade do Vale do Sapucaí (de Pouso Alegre, Minas Gerais), Salomone ingressou no Programa de Especialização de Cirurgia Otológica e Lateral de Crânio do HC da FM-USP após terminar a residência médica.
“O HC conta com um ambulatório especializado em paralisia facial periférica, criado pelo doutor Ricardo Ferreira Bento, que presta assistência multidisciplinar para cerca de 40 pacientes por semana. É, na área, o maior em número de atendimentos da América Latina e um dos maiores do mundo. Lá vivenciei diretamente o quão devastador pode ser uma paralisia facial na vida de um ser humano”, disse.
O próximo passo de Salomone, tema do pós-doutorado, é implantar células-tronco humanas nos animais submetidos a neurotmese. Se os resultados forem tão bons quanto o esperado, a etapa seguinte será o estudo clínico, com a adoção do procedimento em pacientes de cirurgia para reconstituição do nervo.