Crianças brasileiras com câncer têm a mesma oportunidade de tratamento em todas as regiões do país? Foi com base nesse questionamento que a médica Marilia Fornaciari Grabois defendeu a primeira tese do Programa de Epidemiologia em Saúde Pública da ENSP, intitulada O acesso à assistência oncológica infantil no Brasil. O trabalho foi apresentado um ano antes do prazo final e concluiu que as crianças que habitam nas regiões Norte e Nordeste têm dificuldades no acesso a serviços de assistência médica. Elas estão em desvantagem se comparadas às que moram nas regiões mais ricas do país, Sul e Sudeste, uma vez que estas, sim, possuem maior distribuição e concentração das redes de atendimento, reforçando a hipótese da iniquidade de acesso geográfico.
Especialista em oncologia pediátrica e médica do Instituto Nacional do Câncer, Marília Grabois buscou medir o acesso à assistência oncológica em todo o país utilizando dados secundários disponíveis no DataSUS e o pressuposto da importância do diagnóstico precoce em um tipo de câncer que é raro. "O câncer em crianças é raro, tem um desenvolvimento rápido e é uma doença altamente curável se o diagnóstico e o tratamento forem feitos precocemente em centros especializados. O diagnóstico precoce é importante para a sobrevida da criança, que, em países desenvolvidos, está em torno de 70%."
A tese foi organizada na forma de três artigos. O primeiro – já aceito pela revista Cadernos de Saúde Pública – descreveu as variações geográficas de acesso aos serviços de saúde das crianças com todos os tipos de cânceres, com base no mapeamento de óbitos, internações e modalidades de tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS). "Nesse artigo, realizei mapeamentos dessa distribuição no Brasil que mostraram desigualdade no acesso ao uso de serviços de saúde para residentes nas regiões mais carentes do país", afirmou a doutora, que foi orientada pela pesquisadora Marília Sá Carvalho e coorientada por Evangelina Xavier Gouveia de Oliveira.
No segundo artigo da tese foram analisados os fluxos de deslocamento de crianças com câncer entre local de residência (origem) e local de serviço de saúde (destino), atendidas no SUS, utilizando as regionais de saúde como unidade de análise geográfica. "Usamos o sistema de informações geográficas e o de metodologia de redes, segundo o tipo de tratamento recebido – quimioterapia e radioterapia – e internações. Os achados mostram que a maioria das crianças está contemplada pelas redes estruturadas; porém, cerca de 10% dos deslocamentos acontecem de forma errática, fora da rede, obrigando os pacientes a perfazerem grandes distâncias para obter o cuidado necessário." Já no terceiro artigo foi feito um recorte da doença mais prevalente em crianças, a leucemia linfoblástica aguda (LLA), tendo sido realizada uma modelagem através de modelos aditivos generalizados para verificar como era a distribuição tanto da detecção da leucemia quanto da taxa de mortalidade por LLA no Brasil.
As conclusões do trabalho observaram uma desigualdade de acesso importante entre as crianças que residem na região Norte/Nordeste em relação às que habitam nas regiões Sul e Sudeste. "No Brasil, uma das primeiras barreiras a ser vencida pelas crianças com câncer é sua entrada no SUS. Em geral, essa ‘porta’ é atenção básica. Nessa ponta, os pediatras precisam estar treinados e capacitados a suspeitar da doença e proceder ao encaminhamento para os Centros de Alta Complexidade em Oncologia, os Cacon, onde se dá o diagnóstico e tratamento adequado. Vale lembrar que o Brasil possui mais de cinco mil municípios. No entanto, não caberia implantar um Cacon em cada cidade, uma vez que o câncer nessa idade é um evento raro, e isso poderia gerar subutilização, e não contribuir para a formação de expertise profissional e qualidade de assistência aos pacientes. Portanto, a conclusão do trabalho é de que as crianças não possuem a mesma oportunidade de tratamento, pois aquelas que habitam nas regiões mais ricas têm melhor acesso."