Estudo traz discussões importantes sobre como esse povo indígena enfrenta epidemias ao longo dos séculos.
Em um artigo publicado na revista Cadernos de Campo pesquisadores descreveram como os Yanomami do rio Marauiá, no Amazonas, estão usando estratégias de resistência e sobrevivência para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. O estudo foi desenvolvido por Thiago Magri Benucci, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, e Daniel Stiphan Jabra, do Laboratório de Etnologias Transespecíficas (LETS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Para quem nasceu e vive nas grandes metrópoles, aceitar e cumprir o isolamento social para evitar contrair o novo coronavírus não é uma situação muito confortável. Quem vive nos grandes centros urbanos precisa, se quiser se proteger, segundo as determinações médicas, ficar em casa. Mas quando isso é quase uma obrigação, gera, em muitas pessoas, ansiedade, depressão, impaciência e sentimento de privação. O mesmo não acontece com os Yanomamis do rio Marauiá no Amazonas. Esse povo está acostumado com mudança e deslocamentos, pois contam com a capacidade de adaptação e enfrentamento corajoso, que é parte do cotidiano dessa população amazonense.
O locomover-se, o “nadar conforme as ondas”, é prática e costume inerentes desse povo, que conta com estratégias tradicionais de resistência e de sobrevivência diante de grandes crises. Assim, nesta pandemia provocada pelo vírus da covid-19, a ordem é: “sair para o mato”, deixar as aldeias rumo à floresta, refúgio e proteção, como a casa é para as populações urbanas.
Já faz 19 anos que os Yanomamis Pukimapɨwëteri saíram pela última vez para o mato quando “pegou fogo na roça” e a comida acabou. Agora essa prática ressurgiu “como estratégia de resistência frente ao novo vírus”, explicam os pesquisadores no artigo. Se o mundo globalizado ainda não pode controlar o vírus, para os indígenas, o problema cresce, visto a impotência dessa população diante das outras várias doenças que os “brancos” sempre transmitiram a eles. Nas epidemias de sarampo, coqueluche e tuberculose, por exemplo, a vacina ou remédio para eles era “seguir a estratégia ancestral de sair para o mato, isolando-se na floresta. Os autores relatam lembranças da estadia entre os Pukimapɨwëteri no alto rio Marauiá e citam uma informação de Sérgio Pukimapɨwëteri, agente indígena de saúde, de as comunidades estarem “reabrindo caminhos antigos no mato, se preparando para sair da aldeia […] e ir viver no interior da floresta, em acampamentos, onde um grupo familiar e eventualmente todo o grupo local passa a habitar temporariamente”.
Essas conversas com o povo indígena trazem discussões e põem em pauta o aprendizado de todos nós, moradores das grandes cidades, recebidos pelos Yanomamis: as estratégias e o enfrentamento das epidemias pelas quais muitos viveram e vivem hoje. Quando o momento é de paz, grupos saem das aldeias e de suas comunidades apenas para colheita de alimentos nas matas. Quando o momento é de conflitos, sair para o mato é estratégia de defesa e meio de evitar-se brigas entre grupos familiares. Sair para o mato é praticar a wayumɨ, uma prática tradicional de mobilidade, que “segue viva e, junto com ela, a memória das epidemias que assolaram a região décadas atrás em momentos ímpares de instabilidade”, contam os autores.
A imagem dos espíritos das epidemias é denominada de xawarari. Esses seres aparecem vestidos e parecidos com os homens brancos para os xamãs ou “os médicos da floresta” – são eles que estão estudando a melhor maneira de eliminar o vírus que vêm contaminando os povos indígenas muito gravemente desde abril deste ano. As populações indígenas, na pandemia, também não contam com o respeito do Estado e das autoridades quanto ao sepultamento ofensivo às tradições dos ritos funerais. A Associação Yanomami Kurikama, que representa os grupos do rio Marauiá e rio Preto, solicitou a saída de todos os profissionais da área de saúde dessas áreas, porém outras doenças ameaçam esses povos e, para lidar com a situação, criaram uma estratégia: grupos levaram para os acampamentos, além de medicamentos, também o microscópio (operado pelos microscopistas yanomamis) e o sistema de rádio.
Com os riscos de contágio por profissionais de saúde e outros não-indígenas transitando pelo rio, os Yanomami pedem para que eles se retirem da região do rio Marauiá, evitando-se, assim, a interferência negativa do Estado, especificamente no caso da pandemia. Em tempos de emergência, quando o risco é iminente e impetuoso, os Yanomamis são claros no que diz respeito à estratégia política de manutenção da saúde: a recusa de ajuda direta e o isolamento. Voltar a habitar essas regiões, para os Yanomamis, estar o mais longe possível do contato com os não indígenas, estar em movimento e abandonar as comunidades na beira dos rios é um “procedimento de inversão da política de atração e sedentarização, promovida direta ou indiretamente pelo Estado e seus agentes, é dizer não ao que não traz segurança. Sair de wayumɨ, das aldeias, e ir rumo ao mato, nesse contexto, mais do que uma inversão histórica, mostra-se uma técnica política de resistência”, finalizaram os pesquisadores.
Artigo
BENUCCI, T.; JABRA, D. Sair para o mato. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 29 (supl), p. 26-33, 2020. ISSN: 2316-9133. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v29isuplp26-33. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/169771. Acesso em: 05 ago. 2020.
Contatos
Thiago Magri Benucci – Professor na Escola da Cidade, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP). E-mail: thiagobenucci@gmail.com
Daniel Stiphan Jabra – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS-UFSCar). E-mail: danieljabra@gmail.com