Comissões da verdade realizadas em outros países da América do Sul para apurar crimes cometidos em ditaduras militares resultaram na divulgação de relatórios que também dividiram opiniões e deram início a mais investigações sobre os períodos de repressão.
Ainda hoje, na Argentina e no Chile, são mantidas abertas publicamente as feridas daqueles períodos, como sugeriram episódios registrados nesta semana marcada pelo Dia Internacional de Direitos Humanos.
“Enquanto houver alguém daquele período, vítima ou algoz, vivo, as feridas continuarão abertas”, disse à BBC Brasil a ex-senadora argentina Graciela Fernández Meijide, de 83 anos, ativista de direitos humanos.
Ela foi uma das peças-chave da Comissão da Verdade argentina, que data de 1984 e ficou conhecida como Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas). Meijide também é mãe de um desaparecido político.
A Conadep produziu um documento chamado Nunca Mais que, segundo especialistas em direitos humanos, continua servindo de base para as investigações dos crimes contra a humanidade na ditadura argentina (1976-1983).
“O relatório da Conadep nos deu e nos dá o norte nas investigações até hoje”, disse à BBC Brasil Luz Palmas Zaldua, coordenadora da área de memória da ONG de direitos humanos Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), com sede em Buenos Aires.
O relatório reuniu depoimentos de familiares e testemunhas dos crimes, entre outros testemunhos, apontou cerca de 9 mil vítimas da ditadura e prisões clandestinas, e contribuiu com outras informações para “entender”, segundo Meijide, o que aconteceu.
Anos mais tarde, ativistas de direitos humanos argumentaram que a lista de vítimas poderia ser maior, chegando a 30 mil. Eles citavam o relatório como “ponto de partida” para “avanços nas investigações” que continuam ainda hoje em vários tribunais do país.
Feridas duradouras
A Conadep foi realizada em um momento de forte tensão na Argentina, porque começou poucos anos após o fim da ditadura militar no país.
Ainda hoje, com frequência, surgem polêmicas pelas revelações sobre aquele período de sequestros, torturas e mortes. Na quinta-feira, um militar disse à Justiça na província de Córdoba que sabia onde estariam mais de 20 valas comuns contendo as ossadas de vítimas dos governos do período.
A lista de nomes e locais entregues pelo ex-major do Exército Ernesto Guillermo Barreiro, conhecido como Nabo, causou comoção entre familiares dos desaparecidos – aqueles que 31 anos após o retorno da democracia, ainda não foram localizados.
A expressão “desaparecido” está na essência da Conadep, que tentava também localizar as pessoas sequestradas ou tiradas de casa à força pelos soldados armados.
O advogado de defesa do ex-major acusado de envolvimento nos crimes disse à imprensa que, se a Justiça seguisse as orientações de seu cliente, encontraria os corpos.
Claudio Orosz, advogado que defende o grupo Hijos, de filhos e netos de desaparecidos políticos do país, duvida das declarações do ex-militar. “Ele pode estar mentindo. Não é confiável”, disse Orosz.
“As feridas existem e é preciso muito tempo para curá-las. O importante é que todos conheçamos o que aconteceu, das crianças nas escolas aos mais idosos. Saber o que aconteceu é fundamental e se o que foi descoberto (nas comissões) vai virar processo jurídico ou não é um passo mais adiante”, afirmou a ex-senadora Meijide na entrevista por telefone.
Ela disse ainda que a Comissão da Verdade da Argentina foi um “ponto de partida essencial” para fortalecer a democracia
“Aqui na Argentina nem todos nos apoiavam. Mas depois, com a derrota (dos militares) na guerra das Malvinas (que abriu caminho para o retorno da democracia), os que nos ignoravam ou eram hostis passaram a entender a importância do nosso trabalho. Tudo depende muito de cada sociedade”, disse.
“Não se pode ignorar o que aconteceu. Por isso, parabenizo os brasileiros (pelo relatório da Comissão da Verdade brasileira).”
A notícia sobre a entrega do relatório e as lágrimas da presidente Dilma Rousseff foram destaque na imprensa dos países vizinhos, como a Argentina e o Chile.
Três comissões
No Chile, como na Argentina, a Comissão da Verdade surgiu logo após a redemocratização: em 1990, pouco mais de um mês após o fim do regime de Augusto Pinochet (1973-1990).
No entanto, duas outras comissões foram instauradas tempos mais tarde para ampliar as apurações da primeira comissão, como contou o cientista político chileno Ricardo Israel.
Em 2011, o relatório da terceira comissão mostrou que 3.065 pessoas foram “mortas ou desaparecidas” nos 17 anos do regime pinochetista. Os desdobramentos daquele período continuam até hoje.
No país presidido hoje pela socialista Michelle Bachelet, que esteve presa na ditadura, um grupo de parlamentares do partido UDI – legenda que apoiava Pinochet – gerou polêmica esta semana ao realizar, na Câmara dos Deputados, um minuto de silêncio em homenagem ao ex-ditador.
O ato era para marcar os oito anos da morte do general que em 1973 liderou tropas e canhões contra o palácio presidencial de La Moneda.
A filha do ex-presidente Salvador Allende, derrubado por Pinochet, disse que a iniciativa foi “falta de respeito” com os familiares das vítimas daquele período. Em seu perfil no Twitter, a senadora Isabel Allende qualificou o ato também de “uma vergonha”.
O Chile ainda convive com a constituição dos tempos de Pinochet e setores da política discutem, atualmente, se o país deveria realizar uma assembleia para ter uma nova carta magna “dos tempos democráticos”, como disse o sociólogo chileno Manuel Antonio Garretón em entrevista à revista Cosas, de Santiago.
Segundo ele, “a direita chilena aceitou a democracia a muito contragosto”, o que estaria visível ainda nos dias de hoje.
No entendimento de Ricardo Israel, no entanto, a criação da primeira comissão da verdade sinalizava a decisão chilena de remexer o seu passado “para não repetir aqueles males”.
Revelações
Tanto no Chile como na Argentina, ilegalidades daqueles tempos continuam sendo reveladas. No mês passado, dois ex-coronéis do Exército foram condenados por torturarem o pai da presidente chilena, o general Alberto Bachelet, ligado ao ex-presidente Allende. Ele morreu em 1974 na prisão.
Na Argentina, são frequentes as histórias de filhos de vitimas da ditadura que cresceram com outras identidades e que só conheceram suas verdadeiras histórias recentemente, graças a exames de DNA.
Em agosto deste ano, a ativista de direitos humanos Estela de Carlotto, de 84 anos, presidente da entidade Avós da Praça de Maio, se encontrou com o neto que buscava desde 1978.
Sua filha, Paula, foi sequestrada e morta quando grávida, mas o então bebê, que agora tem 36 anos, foi entregue a outra família.
Documentos da Conadep disponibilizados na internet mostravam que Paula estava grávida quando foi capturada, segundo testemunhas – só assim a família soube que ela esperava um bebê quando desapareceu.