A doença de Chagas afeta cerca de 12 milhões de pessoas no mundo. Somente no Brasil, três milhões sofrem com o agravo, segundo o Ministério da Saúde. Considerada a pior das complicações ocasionadas pela doença, a cardiopatia chagásica crônica (CCC) acomete pelo menos um terço dos pacientes e é a causa de mortalidade mais importante relacionada à doença. Na ausência de um tratamento específico, os médicos recorrem a medicamentos usados para combater outras enfermidades do coração, capazes apenas de atenuar os sintomas. É das bancadas do Laboratório de Biologia das Interações do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) que surge uma esperança para os pacientes: um candidato vacinal capaz de reprogramar a resposta imunológica, controlar a progressão da doença e recuperar as lesões provocadas pela enfermidade nos tecidos do coração. O resultado dos testes promissores realizados em camundongos acaba de ser publicado na revista científica internacional PloS Pathogens.
O estudo é fruto de uma parceria com diversas instituições, por meio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas, envolvendo o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Centro de Pesquisa René Rachou (CPqRR/Fiocruz), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal de São Paulo e Universidade de Massachusetts Medical School.
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Construindo o imunizante – Para a construção do imunizante em testes, chamado rAdVax, a ideia foi modificar um vírus muito comum – o adenovírus, presente em cerca de 95% da população mundial – para funcionar como um ‘sistema de entrega’ de elementos capazes de provocar a resposta imunológica. Este adenovírus recombinante foi programado para transportar pequenas sequências genéticas de duas diferentes fases da vida do Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença: a sequência ASP2, referente à forma amastigota do T. cruzi (que vive apenas dentro das células do hospedeiro), e a sequência TS, referente à enzima trans-sialidase, que está presente na forma tripomastigota (um dos estágios do parasito).
“Buscamos, assim, gerar respostas imunes para as duas formas infectantes do parasito, cobrindo seu ciclo de vida quando está dentro do organismo humano”, explica Joseli Lannes, chefe do Laboratório de Biologia das Interações do IOC/Fiocruz e líder da pesquisa. “Desta forma, o imunizante reduzirá a resposta inflamatória induzida pelo T. cruzi, além de evitar o desenvolvimento da miocardite chagásica e, portanto, a forma cardíaca grave encontrada nos pacientes chagásicos crônicos”, completou Ricardo Gazzinelli, pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR/Fiocruz).
Durante os primeiros estudos, publicados em 2008 e 2009, os pesquisadores testaram o candidato vacinal em camundongos com o intuito de profilaxia, para evitar o desenvolvimento da forma aguda da doença de Chagas, que normalmente é assintomática e inaparente. Os resultados comprovaram que o imunizante apresentava potencial para alterar o curso da resposta imunológica, favorecendo uma resposta protetora. A partir daí, o objetivo foi testar a vacina para uma aplicação terapêutica, nos casos em que a forma crônica da doença já está instalada. “Na forma crônica, o paciente já apresenta complicações causadas pela doença, sobretudo danos no coração”, destaca Joseli.
O ganho de uma vacina terapêutica – O conceito de vacina terapêutica, já usado em pesquisas para desenvolvimento de imunizantes contra HIV e tuberculose, por exemplo, representa um novo paradigma para os pacientes que sofrem com a forma crônica da doença de Chagas. Os testes realizados em camundongos e que acabam de ser publicados mostram que é possível alterar o rumo da doença e reprogramar a reposta imune.
Os camundongos foram imunizados em duas etapas: receberam a primeira dose da vacina após 120 dias de infecção, período em que já apresentam sintomas da cardiopatia chagásica, e a segunda dose 40 dias após a primeira. Em seguida, foram analisados em relação a diversos aspectos que costumam ser observados em pacientes, incluindo a resposta imunológica, a quantidade do parasito no organismo, os danos no tecido cardíaco e a presença de anormalidades elétricas, como arritmias e alterações na frequência cardíaca.
“O acompanhamento, realizado por meio de exames de eletrocardiograma, mostrou resultados positivos. Após 160 e 190 dias de infecção, os animais apresentaram redução de anormalidades elétricas, com a frequência e ritmo cardíaco próximos do normal, além de melhora significativa da lesão cardíaca”, aponta Isabela Resende Pereira, aluna do Programa de doutorado em Biologia Celular e Molecular do IOC/Fiocruz e uma das autoras do estudo.
Reprogramando a resposta imune – Os pesquisadores também observaram que o candidato vacinal conseguiu reprogramar e reverter a presença de altos níveis de óxido nítrico no organismo. Produzido pelo sistema imunológico como um mecanismo de combater a infecção pelo T. cruzi, o óxido nítrico é capaz de atuar contra parasitas e tumores, mas, quando presente em grandes quantidades, pode lesionar o coração – que, no caso dos pacientes com Chagas, já está danificado pelo próprio protozoário. A presença de altos níveis de óxido nítrico na doença de Chagas foi proposta como um biomarcador que permitiria indicar a piora do quadro clínico do paciente.
“Após a primeira dose, verificamos que os níveis de óxido nítrico se mantinham altos. Mas, após a segunda dose, ele diminuiu consideravelmente. Além de exames sanguíneos, fizemos a análise do tecido cardíaco, por meio da técnica de PCR em tempo real, e vimos que a enzima que induz a produção de óxido nítrico também estava diminuída”, explica Isabela. “Estes resultados mostram que a produção desta substância pode ser modulada ou reprogramada. Ou seja: a vacina pode alterar o curso da doença que já estava estabelecido”, completa Joseli.
Outro ganho importante foi observado nos linfócitos T CD8+, que têm sua produção ativada pela presença do T. cruzi. De acordo com estudos anteriores, eles se dividem em dois grupos com funções distintas: um deles produz interferon-gama, proteína que diminui os danos cardíacos, enquanto o outro produz perforina, que provoca alterações elétricas e lesão nas fibras musculares do coração.
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No estudo, o número de células perforina+ diminuiu expressivamente, enquanto as células benéficas permaneceram. “Além de diminuir os números de células nocivas, conseguimos manter a quantidade do que chamamos de citocinas benéficas, que ajudam a reduzir os danos cardíacos. Este achado pode representar um grande avanço para os portadores da doença de Chagas”, ressalta Isabela.
De acordo com Joseli, a vacina pode ser um importante instrumento para o controle da doença e principalmente para interferir no resultado da enfermidade entre pacientes crônicos. “Fomos capazes de mostrar que, interferindo em componentes da resposta imune, é possível alterar o curso da doença”, disse a pesquisadora. Apesar do bom resultado, a pesquisadora chama a atenção para os novos desafios que se descortinam a partir de agora. “O desenvolvimento de uma vacina eficaz para a doença de Chagas vai além da questão científica. Precisam ser consideradas todas as barreiras econômicas relacionadas a um produto dedicado a uma doença negligenciada, como é o caso da doença de Chagas”, concluiu Joseli Lannes.