As drogas comprometem todos os aspectos da vida dos usuários. Mas, interfere, principalmente, na percepção que essas pessoas têm sobre a sua saúde atual. A capacidade de alcançar e manter um bom nível de funcionamento, nestas pessoas, é afetada; não conseguem realizar os cuidados necessários para manter ou promover a saúde, nem seguir as atividades da vida que consideram importantes. Todos esses aspectos comprometem o estado de bem-estar e estão atrelados à qualidade de vida, é o que mostra estudo da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP, realizado por Natália Priolli Jora. A pesquisa, que avaliou grupos de usuários de crack, de cocaína e de múltiplas drogas, revelou que a qualidade de vida é prejudicada pelo uso das drogas e afetam de maneira igual os problemas de saúde física, psicológica e social desses indivíduos.
Esse fato, diz a pesquisadora Natália Priolli Jora, surpreendeu, uma vez que o esperado era que a qualidade de vida dos usuários de crack ou pelo menos a dos de múltiplas drogas estivesse muito mais prejudicada, pois “esses usuários andam na contramão dos cuidados de saúde, ou seja, se cuidam muito pouco”. Entretanto, o estudo revelou que os usuários de crack apresentaram problemas muito mais graves relacionados ao trabalho, família e com a justiça.
A pesquisa foi realizada com 140 usuários de drogas, clientes do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) do município de Ribeirão Preto. Desses, 41 eram usuários de cocaína; 54, de crack e 45, de múltiplas drogas. A maioria era de homens, católicos, com baixo nível de escolaridade e que trabalhavam informalmente. O objetivo do estudo foi compreender melhor sobre a qualidade de vida de usuários de cocaína/crack e múltiplas drogas nos aspectos da saúde física, psicológicas e sociais. “Queremos auxiliar e incrementar estratégias de intervenção para serem utilizadas no tratamento da dependência química”, enfatiza Natália.
A pesquisadora lembra que o uso dessas drogas gera graves repercussões individuais, familiares e sociais, comprometendo profundamente a qualidade de vida desses usuários, e das pessoas com quem convivem. “A literatura já registrou que a qualidade de vida é influenciada por variáveis como sexo, escolaridade, idade, condição econômica e presença de doenças incapacitantes, além de raça e etnia”, diz Natália.
Desemprego e baixa escolaridade
Os resultados apontam outros dados importantes para a implementação de políticas públicas no tratamento e prevenção da dependência química. O estudo mostrou que há uma parcela considerável de usuários de cocaína e crack mais jovens quando comparados aos de múltiplas drogas. O primeiro uso de cocaína, crack e múltiplas drogas, diz a pesquisadora, ocorreu em pessoas na fase da adolescência (média de 14,9 anos). As drogas usadas nesta fase foram os inalantes, seguidos pelo tabaco e maconha, aos 15 anos. Como a literatura tem evidenciado que a idade do primeiro uso acontece cada vez mais cedo, argumenta a pesquisadora, esses dados podem ser base para ações preventivas junto a grupos dessa idade.
Quanto ao estado civil, a maioria dos usuários de cocaína e crack se declarou solteira; já os de múltiplas drogas, divorciados/separados. A pesquisadora lembra que um relacionamento estável pode gerar efeito protetor na idade adulta, mas também que o divórcio pode contribuir para um aumento do consumo de substâncias, principalmente o álcool. Outro fator de proteção importante frente ao uso de drogas, que pode auxiliar no processo de recuperação da dependência é a religiosidade. Na pesquisa de Natália, a maioria dos usuários revelou professar a religião católica.
O estudo também detectou baixos níveis de escolaridade: ensino médio completo ou incompleto, entre os usuários de cocaína; os usuários de crack e múltiplas drogas mal completaram o ensino fundamental, uma vez que a droga contribui fortemente com o abandono escolar e prejudica o desempenho no estudo. O mesmo foi revelado em relação ao emprego. A maioria dos usuários encontrava-se fora do mercado de trabalho formal, justificados por não ter formação profissional qualificada, ou mesmo pelo uso da droga que tem sido considerada um dos principais motivos para a perda de emprego e absenteísmo no trabalho.
Já a procura por tratamento é feita mais tardiamente, pelos próprios usuários de drogas ou seus familiares, numa fase em que estão fazendo uso crônico dessas drogas e começando a apresentar problemas de saúde. A pesquisadora alerta que, apesar da gravidade e dos riscos do uso do álcool nos usuários de cocaína e crack e as consequências para a saúde desses usuários, na prática dos serviços essas combinações ainda são pouco investigadas. O doutorado, Consumo de cocaína, crack e múltiplas drogas: interfaces com a qualidade de vida de usuários, foi defendido em março último na EEERP e orientado pela professora Sandra Cristina Pillon.
Para a orientadora, a avaliação de qualidade de vida tem se tornado um relevante critério para mensurar resultados terapêuticos em diferentes patologias crônicas, como a dependência química. “Ela possibilita a avaliação da efetividade dos tratamentos em distintos domínios, o que permite o direcionamento de estratégias terapêuticas para focar objetivos mais específicos no tratamento desses usuários”, enfatiza. A professora lembra que a avaliação da qualidade de vida pode beneficiar a relação entre paciente e profissional da saúde, uma vez que ambos conseguem perceber o processo de doença de forma mais ampla, localizando as prioridades, melhorando a compreensão por parte do profissional de saúde e a confiança por parte do paciente.