Em uma pesquisa com resultados publicados na edição de junho da revista Nature Communications, pesquisadores do A.C. Camargo Cancer Center identificaram um conjunto de mutações relacionado ao desenvolvimento do tumor de Wilms – a neoplasia renal mais frequente em crianças.
A descoberta abre caminho para o desenvolvimento de novas terapias e novos métodos para diagnosticar a doença mais precocemente.
“Atualmente, o diagnóstico só é possível quando já há uma massa tumoral palpável. Mas, se conseguirmos meios para identificar a neoplasia em uma etapa mais inicial, a intensidade do tratamento e dos efeitos colaterais poderá ser significativamente reduzida”, disse Dirce Maria Carraro, líder do Laboratório de Genômica e Biologia Molecular do A.C. Camargo Cancer Center e coordenadora da pesquisa apoiada pela FAPESP.
De acordo com Carraro, esse tipo de câncer acomete uma em cada 10 mil crianças no mundo – a maioria na faixa etária de 2 a 4 anos. O tumor pode aparecer em qualquer parte de um dos rins e, em 5% dos casos, é bilateral.
O tratamento geralmente envolve uma cirurgia para a retirada do órgão afetado, além de quimioterapia e – em casos mais avançados – radioterapia. A intensidade do tratamento quimioterápico depende da extensão da lesão.
“O prognóstico costuma ser bom, com taxas de cura em torno de 80%. Mas muitos pacientes sofrem com os efeitos tardios do tratamento. Os mais comuns são distúrbios cardíacos, perturbações musculoesqueléticas e desenvolvimento de um segundo tumor. Por esse motivo, muitas pesquisas buscam marcadores que permitam saber quando, de fato, é necessário intensificar o tratamento”, contou Carraro.
Biogênese de microRNA
Antes do estudo recém-publicado pela equipe do A.C. Camargo, mutações genéticas relevantes haviam sido identificadas em apenas 30% dos tumores de Wilms estudados, principalmente nos genes WT1, WTX e β-catenina. “Isso significa que em 70% dos casos não havia sido encontrada nenhuma alteração genética que justificasse o aparecimento do tumor”, disse Carraro.
Com o objetivo de encontrar novas mutações somáticas (presente apenas no tumor e não nas linhagens germinativas dos pacientes) relacionadas à doença, o grupo realizou o sequenciamento completo do exoma (parte do genoma onde estão os genes codificadores de proteínas) do tumor de um paciente atendido no hospital.
Também foram sequenciados o exoma dos leucócitos do sangue da criança e dos pais. “O objetivo era identificar mutações presentes apenas no tumor, ou seja, aquelas mutações adquiridas durante o processo de formação do tumor”, disse Carraro.
Chamou a atenção dos pesquisadores uma mutação observada em um domínio importante da proteína codificada pelo gene DROSHA, que tem um papel crucial no processo de biogênese de microRNAs.
“Os microRNAs são pequenas moléculas de RNA que, embora não codifiquem proteínas, têm papel fundamental na regulação dos genes codificadores. Os microRNAs, portanto, desempenham um papel importantíssimo no controle da expressão gênica e, dessa forma, asseguram a função de uma determinada célula. Alterações em um gene envolvido na biogênese dessas pequenas moléculas poderiam ter uma implicação muito grande no aparecimento do tumor de Wilms”, disse Carraro.
Segundo a pesquisadora, a mutação encontrada afeta o domínio de ligação de magnésio da proteína DROSHA – central para a enzima exercer corretamente seu papel dentro da célula. “Isso nos chamou a atenção, então decidimos expandir a análise para um número grande de amostras com o objetivo de ver se a mutação era frequente”, disse.
O passo seguinte foi analisar amostras de mais de 200 tumores de Wilms – parte delas do banco de tumores do A.C. Camargo Cancer Center e parte do Children Oncology Group, dos Estados Unidos. Os cientistas detectaram essa mutação específica em 10% de todos os tumores avaliados – o que a classifica como uma mutação recorrente.
Esse resultado despertou a hipótese da importância da perturbação da biogênese de microRNA no desenvolvimento desse tumor. Para confirmá-la, os cientistas sequenciaram outros genes importantes que participam do processo de biogênese de microRNA, além do gene DROSHA.
As análises revelaram que 33% dos tumores tinham mutações nesses genes, entre eles DGCR8, DICER1, XPO5, TARBP2 e em outros domínios do gene DROSHA, reforçando o papel crucial da biogênese de microRNA no processo de formação do tumor de Wilms.
Em uma etapa seguinte, os pesquisadores realizaram ensaios funcionais em uma linhagem de células embrionárias de rim para entender qual exatamente era o impacto da mutação recorrente em DROSHA na síntese de microRNA.
“Induzimos a mutação nas células e, ao avaliar o final do processo, notamos que havia uma preferencial diminuição no nível de expressão dos microRNAs maduros. Nossos experimentos mostraram que a mutação recorrente no gene DROSHA impedia a geração de precursores de microRNA capazes de serem reconhecidos por uma outra proteína chamada Dicer, também crucial no processo de biogênese de microRNA. Em outras palavras, a mutação impediu que o processamento do precursor de microRNA ocorresse da forma adequada afetando a geração dos microRNAs maduros”, disse Carraro.
Paralelamente, o grupo confirmou que o fenômeno da diminuição preferencial no nível de expressão de microRNAs maduros também ocorria em tumores de Wilms com e sem a mutação em DROSHA, sugerindo fortemente que esse impedimento no processo de maturação é fundamental para a formação do tumor.
Impacto na doença
Na avaliação de Carraro, os achados abrem perspectivas para novos estudos que podem levar ao desenvolvimento de novas terapias, pois foi identificada uma via celular extremamente importante e frequentemente alterada em tumores de Wilms.
“Uma das estratégias que pretendemos testar no futuro é a possibilidade de detectar na urina de pacientes mutações nesses genes e em outros avaliados neste trabalho, que em conjunto compreenderam mais de 60% das amostras de Wilms. Isso abriria perspectivas de diagnóstico precoce, antes de manifestação clínica, de forma simples e de baixo custo”, contou.
O artigo Recurrent somatic mutation in DROSHA induces microRNA profile changes in Wilms tumour (doi:10.1038/ncomms5039) pode ser lido em www.nature.com/ncomms/2014/140609/ncomms5039/full/ncomms5039.html