Andrei Andreyevich Markov (1856-1922) foi um matemático russo que se notabilizou pelo comportamento político libertário e por seus trabalhos em probabilidade e processos estocásticos. Quase um século depois de sua morte, os substantivos “markovianidade” e “não markovianidade” tornaram-se palavras-chave no estudo da informação e da computação quânticas.
Um sistema é dito “markoviano” quando seu comportamento atual não depende do comportamento anterior. Opostamente, um sistema será “não markoviano” quando o comportamento presente depender do comportamento passado. O conceito de “não markovianidade” traz, implícita, a ideia de memória.
A relação entre o comportamento não markoviano e o fluxo de informação entre o sistema e seu meio teve sua compreensão acrescida pelo artigo Non-Markovianity through Accessible Information, publicado por Felipe Fernandes Fanchini e colegas na revista Physical Review Letters em 29 de maio.
Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no campus de Bauru, e pesquisador associado do Abdus Salam International Center for Theoretical Physics (ICTP), em Trieste, Itália, Fanchini trabalha com informação e computação quânticas e desenvolve atualmente a pesquisa “Estudo das correlações quânticas em sistemas quânticos abertos”, com apoio da FAPESP.
“Nosso artigo apresentou uma interpretação para a medida de não markovianidade, baseada na dinâmica do emaranhamento quântico em termos de fluxo de informação”, disse o pesquisador à Agência FAPESP.
Para entender essa afirmação é necessário dar alguns passos atrás, a fim de estabelecer com maior precisão certos conceitos. Primeiro, o de “não markovianidade”.
“A não markovianidade é, basicamente, um efeito de memória do meio. Um sistema dissipativo, que está perdendo coerência, que perde informação para o meio ambiente, é dito não markoviano se o que acontece no presente depende do que aconteceu no passado, isto é, se o modo como dissipa agora depende do modo como dissipou antes”, disse Fanchini.
O sistema, nesse caso, é constituído por qubits, ou unidades de informação quântica, que são os análogos quânticos dos bits. Qualquer sistema que admita dois estados quânticos pode ser considerado um qubit. Exemplo disso é a polarização do fóton, que pode ser vertical ou horizontal. Ou o número quântico do spin, que pode ser +1/2 ou -1/2.
O bit também é um sistema de dois estados. Mas a grande diferença em relação ao qubit é que o bit pode assumir apenas um estado de cada vez, correspondente ao número zero (0) ou ao número um (1). Tal é a base da lógica binária. Já o bit quântico pode assumir, também, uma superposição dos dois estados – e esta seria a grande vantagem da computação quântica, que, em termos práticos, ainda se encontra em estado embrionário.
A mensuração da memória da interação entre os qubits e o meio foi o tema que ocupou a atenção dos pesquisadores brasileiros. “Em 2009, Heinz-Peter Breuer, da Universidade de Freiburg [na Alemanha], e parceiros apresentaram uma proposta para mensurar a não markovianidade baseada no refluxo de informação. Se parte da informação perdida pelo sistema é devolvida pelo meio e volta para o sistema, o processo é caracterizado como não markoviano”, disse Fanchini.
“Posteriormente, Ángel Rivas [Universidade de Ulm, Alemanha, e Universidade de Hertfordshire, Reino Unido], Susana Huelga [Universidade de Ulm, Alemanha, e Universidade de Hertfordshire, Reino Unido] e Martin Plenio [Universidade de Ulm, Alemanha, e Imperial College London, Reino Unido] desenvolveram uma outra medida de não markovianidade, com base na dinâmica do emaranhamento”, contou.
“Eles consideravam dois sistemas: um que estava interagindo com o meio ambiente e outro tomado como auxiliar. Emaranhavam esses dois sistemas e verificavam se o emaranhamento tinha um comportamento não monotônico, isto é, se a medida do emaranhamento, depois de decair, voltava a subir. Se o emaranhamento só decaísse, isso caracterizaria um comportamento markoviano. Se houvesse descidas e subidas, se houvesse oscilação, isso caracterizaria um comportamento não markoviano”, prosseguiu o pesquisador.
Aqui é preciso lembrar que o emaranhamento ocorre quando pares ou grupos de partículas são gerados ou interagem de tal maneira que o estado quântico de cada partícula não pode ser descrito independentemente, mas depende do conjunto, por mais distantes que as partículas se encontrem, umas em relação às outras.
Exemplo de emaranhamento, por excelência, é o paradoxo Einstein-Podolsky-Rosen (EPR), proposto, em 1935, por Albert Einstein (1879-1955), Boris Podolsky (1896-1966) e Nathan Rosen (1909-1995), em sua polêmica com a Escola de Copenhague pela interpretação da teoria quântica.
“O que faltava era associar as duas ideias: a da dinâmica do emaranhamento e a do refluxo de informação. Foi isso que o nosso trabalho agregou. Conseguimos apresentar uma interpretação para a medida de não markovianidade baseada na dinâmica do emaranhamento em termos de fluxo de informação. Mostramos que, no exato momento em que o emaranhamento, que havia decaído, voltava a subir, o meio estava perdendo informação para o sistema. Isso não havia sido provado antes”, disse Fanchini.
A demonstração não se baseou apenas no tratamento matemático da teoria, mas também em resultados experimentais, obtidos por meio de um aparato óptico. Com o auxílio de fótons (os quanta de radiação eletromagnética), criou-se um par de sistemas quânticos emaranhados, que, por sua vez, interagia com um terceiro qubit que representava o meio ambiente. Utilizando a polarização dos fótons (vertical ou horizontal) a fim de representar os dois estados dos bits quânticos, e mediante interações controladas entre os sistemas, constatou-se o que era previsto teoricamente.
“Se o emaranhamento só decaísse, isso significaria que o meio ambiente estava captando informação o tempo todo. O fato de o emaranhamento voltar a subir se deve ao refluxo de informação, do meio para o sistema”, explicou Fanchini.
“Imaginemos um processo de medida na mecânica quântica. Esse processo é constituído pelo sistema que está sendo medido, pelo aparato de medida e pelo observador. O observador olha para o aparato para obter informação sobre o sistema. Se ele consegue obter cada vez mais informação, o processo é dito markoviano, porque a informação está fluindo do sistema para o observador, que representa o meio”, disse.
“Trata-se de uma informação assistida, porque o sistema não é mensurado diretamente. O que está sendo mensurado é o aparato, que, por sua vez, está em contato com o sistema. O que ocorre em um processo não markoviano – e foi isso que demonstramos – é que a informação sobre o sistema começa a diminuir durante o processo de medida. Isto é, que a informação está refluindo para o sistema”, disse.
Além de Fanchini, o artigo foi assinado por Göktuğ Karpat (Faculdade de Ciências, Unesp de Bauru); Baris Çakmak (Faculty of Engineering and Natural Sciences, Sabanci University, Istambul, Turquia); Leonardo Castelano (Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos); Gabriel Aguilar, Osvaldo Jiménez Farías, Stephen Walborn, Paulo Souto Ribeiro (os quatro do Instituto de Física, da Universidade Federal do Rio de Janeiro); e Marcos César de Oliveira (Instituto de Física Gleb Wataghin, Universidade Estadual de Campinas).
O artigo Non-Markovianity through Accessible Information, de Felipe Fernandes Fanchini e outros (DOI: http://dx.doi.org/10.1103/PhysRevLett.112.210402), pode ser lido por assinantes da Physical Review Letters em https://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.112.210402 .