Procurar e estudar esqueletos para assim desvendar hábitos e problemas de saúde que perpassam os séculos é o que instiga pesquisadores envolvidos em mais uma etapa do projeto Paleodemografia, saúde e adaptabilidade em populações pré-históricas da costa sul-sudeste brasileira. O estudo, coordenado pela pesquisadora Sheila Mendonça, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), teve início em 2007 e está sendo realizada no sítio arqueológico Cubatão I, localizado em Joinville (SC). Até agora 20 sepultamentos foram encontrados e metade deles são de crianças.
De acordo com Sheila, dados preliminares das investigações mostram que os esqueletos não apontam traços de infecções graves ou sinais de brigas. "Encontramos traços de anemia, porém nenhum indivíduo com sinais de infecção grave. Nada também relacionado à violência ou agressão. Até agora não vimos nada que fuja dos padrões normais dessas populações. As partes que mais apresentam evidências dos aspectos de saúde são os dentes. Esta população praticamente não apresenta cáries, mas tem muitos sinais de desgaste dos dentes, abscessos e infecções, que são características desses grupos de litoral", comentou a pesquisadora.
Um dado interessante é a média de idade dos esqueletos encontrados. Dos 20 esqueletos encontrados, dez são de crianças até quatro anos de idade. O objetivo do projeto é estudar a paleodemografia, por isso Sheila aponta que foi importante encontrar um número tão expressivo de crianças. Ela explicou que "é óbvio que as crianças dessa época corriam um risco muito maior de morte. Mas, como muitas escavações anteriores não eram feitas com tanta experiência, cuidado e técnica, alguns esqueletos foram danificados ou perdidos. Tanto que se discute se a mortalidade infantil seria um padrão cultural. Com esses achados, desconfirmamos essa hipótese, pois vimos que as crianças também morriam em números bastante significativos".
A ideia dessa pesquisa é encontrar cerca de 100 esqueletos para fazer um bom levantamento paleodemográfico dessa população. "Muitos dos esqueletos que encontramos estão bastante danificados e às vezes se quebram na retirada. Afinal, eles têm mais de 2,5 mil anos. Por isso, é tão importante participarmos do trabalho de campo, das escavações. Assim, podemos ver tudo perfeitamente: a posição, as condições em que estão enterrados e os seus rituais de sepultamento", disse Sheila, lembrando ainda que outros objetos e marcas, como a comida, as datações feitas e as marcas de fogueiras, também interessam para o estudo, pois estes resquícios indicam hábitos de vida e cultura.
Como desdobramentos deste estudo, estão sendo desenvolvidos artigos, teses e dissertações sobre o tema saúde e paleodemografia de populações de sambaquis por alunos e pesquisadores da Ensp, bem como uma pesquisa sobre pólen e resquícios de vegetais nas amostras de solo. Além disso, também existem estudos sobre a análise do tártaro dos dentes dos esqueletos e sobre a mobilidade populacional dos indivíduos. "Nesse estudo, foi utilizada uma técnica de análise do esmalte do dente. Com isso, foram identificados três esqueletos que viviam naquela região, mas eram provenientes da área do planalto do país. Do ponto de vista da saúde, a investigação da troca e do contato entre populações pode ser muito reveladora. Assim, podemos analisar as doenças e as condições de vida de cada população", acredita a pesquisadora.
O tipo de contágio e a distribuição dos vírus também explicam uma série de mudanças na saúde pelos séculos. "Algumas vezes encontramos infecções em certos esqueletos que não eram comuns para certa região. A teoria de mobilidade pode nos dar uma ideia disso. Portanto, podemos afirmar que este trabalho não termina agora. Pretendemos encontrar 100 esqueletos, mas a densidade de sepultamentos ou aglomeração neste sítio é baixa, de maneira que precisamos ainda escavar muito para chegar a eles, tanto em área quanto em profundidade", apontou.
Além de Cubatão I, nesta região, já foram apontados mais de 140 sítios arqueológicos. Esta é uma imensa região em torno de uma baía que abrigou, por cerca de 4 mil anos, essas populações. Até esta etapa, a pesquisa foi desenvolvida pela Ensp em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e o Museu do Sambaqui de Joinville, vindo o financiamento principal do Centre National de la Récherche Scientifique de Paris/França (CNRS).