Viviane Andrade tem dois filhos autistas, mas só ganha do governo um Benefício de Prestação Continuada, no valor de um salário-mínimo. Os adolescentes gêmeos, entretanto, dão trabalho dobrado à mãe. Vítima da burocracia estatal, Viviane agora contará com assessoria jurídica para conseguir os dois benefícios de que precisa. O anúncio do apoio foi feito em 30 de abril pelo advogado Claudio Sarkis Assis, secretário-geral da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – regional Rio de Janeiro (OAB-RJ), no debate realizado na casa após a exibição do documentário Um dia especial, que retrata a rotina de mães de filhos com autismo e outras síndromes mais raras. A realização do filme, produzido e dirigido por Yuri Amorim, teve apoio da Faperj, por meio do Programa de Apoio à Produção e Divulgação das Artes, e da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, na pós-produção.
O suporte oferecido pela OAB-RJ a Viviane prova que o cine-debate – no qual após cada exibição do filme é realizado um debate com convidados, mães, o diretor e o público – pode efetivamente ajudar as famílias a encontrar apoios para o enfrentamento de seus problemas. As sessões podem ocorrer em escolas, universidades, centros de saúde, empresas, ONGs ou mesmo em praças públicas. Presente ao evento, o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Valcler Rangel Fernandes, disse que o filme ajuda a descaracterizar estereótipos e a renovar o modo de pensar: “O cinema, como meio de comunicação de massa, é a melhor maneira de fazer provocações sobre questões da nossa existência. O cine-debate levanta a questão da responsabilidade do setor público e da sociedade e estimula um aprendizado sobre tolerância em cada um de nós. O filme é uma ferramenta para transformar realidades. Iniciativas como esta têm um valor agregado enorme e devem ser reproduzidas”.
Rotinas especiais em foco
Um dia especial é resultado da ideia de Andrea Apolonia, mãe de Rafaela, que tem síndrome de Angelman. “É um sonho realizado. Eu queria mostrar o meu dia-a-dia com a Rafa – as coisas boas e as ruins. Acredito que o filme seja importante não só para famílias, terapeutas e profissionais de saúde como também para as pessoas que não têm ideia do cansaço que dá ser cuidador. Não vamos esconder, vamos mostrar”, enfatiza. Andrea integra a Rede de Mulheres Muito Especiais, um grupo de ajuda mútua que conta com apoio do Instituto Educateur, do Centro de Estimulação e Psicopedagogia/Criart e da Fiocruz.
De acordo com a psicóloga Fátima Gonçalves Cavalcante, que coordena o projeto da Faperj e apoia a Rede, o cine-debate é uma tecnologia social e uma forma de trabalhar o empoderamento das mães. “É uma ferramenta reflexiva capaz de reduzir a ignorância social sobre o tema, ainda muito grande. Ele abre novos olhares, contextualiza a real dificuldade dessas famílias e favorece a empatia, já que quem assiste o filme tem a oportunidade de compreender a dor do outro”, explica. Os efeitos dos debates e o seu impacto no imaginário social das plateias também são objeto de estudo no projeto apoiado pela Faperj, assim como as consequências do filme para as mães da Rede de Mulheres Muito Especiais e suas famílias.
“A ideia é que suas histórias deem visibilidade a histórias de muitas outras mulheres e que a socialização de suas biografias abra caminho para trocas com outras pessoas com experiências semelhantes. Muitas mulheres podem estar escondidas, ou sem ter um apoio ou sem uma referência para ajudar seu filho com deficiência. A Rede de Mulheres veio para crescer e se fortalecer nos laços de solidariedade e ajuda mútua e pretende incluir outras mulheres com filhos com deficiência e suas famílias, os esposos, os irmãos, os parentes”, afirma Fátima, que é pesquisadora da Fiocruz e professora da Universidade Veiga de Almeida.
Para a psicóloga, a reunião do cinema com o debate produz impactos que abalam os paradigmas tradicionais da ciência. “As artes produzem um olhar com o coração, enquanto a ciência fica engessada na razão. O filme é um somatório de sensibilidades. De um lado, mães e filhos com deficiência que tiveram a oportunidade de contar sua história; de outro, um cineasta que escutou e compreendeu a proposta, construiu o roteiro, filmou e editou as histórias em cenas vivas que acolhem ‘o sensível’ do viver e da vida, muitas vezes subtraído no olhar científico reducionista. Essa ‘química’ tem produzido efeitos interessantes nas plateias”, conta. Fátima acrescenta que está sendo organizada uma forma de o grupo ser identificado e contactado, incluindo a produção de um site para ajudar nos contatos e trocas.
Educação inclusiva é controversa
Uma questão debatida no evento na OAB-RJ foi a educação das crianças especiais – se ela deve ser feita em escolas especiais ou se deve ser inclusiva, nas escolas regulares. “O filme deixa claro que não há consenso nesse ponto nem entre as mães”, explicou Amorim. Algumas defendem que a criança deva ir para a escola normal, desde que com um mediador sempre junto, mas reconhecem que isso é muito difícil e ainda está distante da realidade. Outras acreditam ser melhor reformular os conceitos de inclusão e oferecer várias atividades diferentes para a criança, sempre com orientação. Mas uma coisa é consenso: as escolas públicas não têm estrutura e os professores não têm preparo.
Sarkis Assis, que é pai de um jovem autista, disse que a legislação está avançando: foi aprovada na Assembleia Legislativa uma lei que obriga o estado a oferecer serviços especializados com profissionais da saúde e reabilitação. “Quem milita nessa área sabe que não há condições de a criança ser incluída no ensino público regular do jeito que ele se apresenta hoje”, disse. No âmbito federal, a lei mais moderna, segundo o advogado, é a Berenice Piana, que obriga os governos a oferecer atendimento especializado. No final, Rangel Fernandes e Sarkis Assis acordaram que a Fiocruz e a OAB deverão pensar conjuntamente políticas públicas para melhorar a qualidade de vida das pessoas especiais e suas famílias.