O crack é a mistura de pasta bruta de cocaína, bicarbonato de sódio e água. Ao fumarem a droga, os usuários inalam não apenas a cocaína, mas também a metilecgonidina (AEME), um sobproduto derivado da queima da droga. Pesquisa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP traz alguns resultados que ajudam a entender o papel que a AEME exerce nos mecanismos de dependência do crack e poderá ajudar na criação de novas estratégias para o tratamento do vício.
De acordo com o farmacêutico Raphael Caio Tamborelli Garcia, a cocaína inibe a recaptação da dopamina, neurotransmissor responsável por sensações como euforia, prazer e atividade motora. “O crack é uma das formas mais devastadoras de uso de cocaína, porque após o efeito desejado, que é a euforia, o usuário sente a necessidade de usar a droga de novo”, afirma. Ele explica que no ciclo normal do neurotransmissor, a dopamina ou é recaptada e volta para o ciclo, ou é metabolizada por enzimas após sua ação. “A cocaína impede essa recaptura”, diz. A pesquisa teve orientação da professora Tania Marcourakis, da FCF, e coorientação da pesquisadora Maria Regina Lopes Sandoval, do Instituto Butantan.
Os testes foram realizados no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, com a colaboração da professora Rosana Camarini. O pesquisador trabalhou com 4 grupos, composto por 12 ratos cada. Cada grupo recebeu um tipo de droga (cocaína, AEME, cocaína + AEME, além do grupo controle) durante 9 dias consecutivos, sendo uma dose ao dia. Após recebrem as drogas, os animais eram colocados em uma arena, chamada de campo aberto. O pesquisador analisou a atividade locomotora dos animais enquanto percorriam a arena. Após uma pausa de uma semana (para simular um período de abstinência), foi feito novo oferecimento das substâncias, procedimento denominado “desafio”. Feito isso, o pesquisador analisou o comportamento dos animais novamente e comparou com aquele observado no décimo dia de administração das drogas.
Aumento da expressão da atividade locomotora
Ratos que receberam apenas a AEME não apresentaram alteração de comportamento. Os que receberam cocaína tiveram aumento da atividade motora, sendo que, no desafio, houve aumento da expressão da atividade locomotora. Já no grupo que recebeu AEME + cocaína, aumentou ainda mais a atividade locomotora. “Com estes resultados, podemos observar que a AEME potencializou os efeitos da cocaína”, observa o pesquisador.
Segundo Garcia, ao iniciar o oferecimento da droga, como se trata de algo novo para o organismo, a tendência é que os níveis de dopamina aumentem, chegando, com o passar do tempo, a um estágio de tolerância. A partir daí, os neurônios se adaptam e então é preciso aumentar a dose da droga para conseguir os mesmos efeitos de antes. “Chamamos isso de processos neuroadaptativos: muitos receptores ficam disponíveis para a dopamina no período de abstinência, pois o organismo passa a sentir falta da liberação excessiva desse neurotransmissor”, conta.
Após 90° dia de experimento, alguns animais foram eutanaziados para estudos neuroquímicos dos cérebros. Foram pesquisadas as regiões cerebrais núcleo accumbens e estriado — responsáveis por comportamentos relacionados à dependência química. Estes estudos tiveram a colaboração do professor Jorge Flório, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP.
Na região do estriado, em todos os animais foi observado um aumento nos níveis de dopamina, resultado que condiz com os estudos comportamentais. No grupo AEME + cocaína foi observado um aumento ainda maior dos níveis desse neurotransmissor, em comparação ao grupo que recebeu apenas cocaína.
Já no núcleo accumbens, houve aumento dos níveis de dopamina nos animais de dois grupos: cocaína e cocaína + AEME. Entretanto, isso não foi observado nos animais que receberam apenas a AEME.
Doutorado sanduíche
O pesquisador realizou parte da pesquisa na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, na modalidade doutorado sanduíche. O foco foi estudar o comportamento da AEME nos receptores colinérgicos muscarínicos, ligados à recepção da acetilcolina. Esses receptores são divididos em 5 classes (M1 a M5), estão presentes em diferentes neurônios do sistema nervoso central, e fazem uma interconexão com os neurônios que liberam dopamina.
Os experimentos foram realizados in vitro utilizando-se de células de ovário de hamster chinês (CHO). Os resultados mostraram que a AEME se ligou a todos os receptores, com preferência pelo M2. Nos subtipos M1 e M3, a AEME apresentou uma ação agonista parcial, ou seja, estimulou os receptores com uma potência menor que a da acetilcolina. Para os subtipos M2, M4 e M5, ocorreu um mecanismo oposto, ou seja, ela teve uma ação antagonista, bloqueando a ação da acetilcolina.
O pesquisador comenta que o núcleo accumbens expressa alguns desses receptores e o estriado, outros. Segundo ele, esses resultados conseguem explicar porque aumentou tanto a dopamina no estriado e não aumentou para o accumbens. “Isso mostra que a AEME é um componente farmacológico importante nos processos neuroadaptativos que medeiam a dependência”, diz.
Para o pesquisador, ainda são necessários estudos complementares. Porém, a princípio, esses resultados sinalizam para a possibilidade de manipulação dos receptores colinérgicos muscarínicos por meio da ativação ou bloqueio de alguns deles. “Com isso seria possível modular os níveis de dopamina para que o usuário não tenha prazer algum ao usar a droga”, sugere.