Políticas Públicas abordam prostituição apenas para a prevenção da aids

Desde o início do século XX a prostituição tem sido abordada no Brasil como um problema de saúde pública. De acordo com a psicóloga Luciene Jimenez, a situação é histórica. “A epidemia de sífilis foi o principal motivo para a criação de políticas de saúde para esta população. As ações estavam pautadas sobre o agente de transmissão da doença e não consideravam as pessoas envolvidas” aponta, ressaltando que nos dias atuais, em relação à aids e prostituição acontece o mesmo viés regulamentarista dos tempos da sífilis. Na opinião da pesquisadora, falta espaço para a cidadania.

Luciene é psicóloga do Centro de Referência de DST/HIV da cidade de Diadema, na Grande São Paulo, e desenvolveu a pesquisa na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. O estudo foi baseado na experiência de quatro anos de trabalho em campo e entrevistas com prostitutas e travestis da cidade. “As políticas de saúde vigentes contêm a epidemia [de aids] e até têm apresentado alguns resultados no sentido de barrar a transmissão do vírus, mas não de propiciar espaços para o exercício de cidadania e inclusão social destas pessoas.”

De acordo com a psicóloga, até maio de 2008, quando foi encerrada a pesquisa, a política de saúde colocada pelo Programa Nacional para profissionais do sexo estava centrada na prevenção de DST/HIV, compreendida como uma proposta de contenção da transmissão do vírus por meio da distribuição de insumos (camisinhas, gel lubrificante, folders, etc) e do melhor acesso aos serviços de saúde. “Para ser uma política voltada para a questão da cidadania precisa de fluxos e parcerias que estão fora da saúde como educação, cultura, habitação, etc.”, reflete Luciene.

Como consequência, ela ressalta que há um grande déficit na qualidade do atendimento a essa população. “Os travestis e as prostitutas têm acesso a insumos, sorologias e atendimentos variados no que tange às DST/Aids. Na verdade, seus maiores problemas, inclusive de saúde, vão muito além disso”.

Exclusão
Os travestis são os que mais sofrem, pois são os mais excluídos do acesso a bens, serviços e programas sociais. “A prostituta, por transitar entre mulher e prostituta até consegue driblar o estigma e, esporadicamente, ter acesso à educação e outros serviços. Mas os travestis não têm como entrar na escola sem mostrar que são travestis. E não frenquentarão a escola se não tiverem um mínimo de aceitação, uma frestinha de porta aberta.”, explica.

“Muitas vezes, esses travestis que nós vemos nas ruas têm 14, 16 anos. Parecem mais velhos. Muitos, inclusive, moram na rua ou em casas de cafetinas, em condições bastante precárias”, afirma Luciene. Além disso, o consumo de crack está fortemente disseminado, e os problemas de saúde decorrentes do uso de hormônios e da aplicação de silicone são frequentes. “Todas as transformações que fazem sobre corpo são realizadas à margem dos sistemas de saúde”.

De acordo com um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizado há mais de dez anos por João Luiz Grandi (1998), cerca de 40% dos travestis que trabalhavam com sexo na cidade de São Paulo, eram portadores do vírus da aids. “É um problema grave. E como vamos interpretar esse número? Distribuir mais e mais camisinhas? Ou vamos entender que esse número pode ser um bom indicador do grau de exclusão e que outras ações se fazem urgentes?”.

Em relação à saúde das prostitutas, Luciene considera que não há um entendimento sobre os vários problemas que cercam a prostituição. “As questões de saúde citadas pelas prostitutas foram: dificuldades decorrentes da menstruação e as técnicas desenvolvidas para lidar com isso, como o uso de tampões feitos de algodão ou buchinhas”. Além disso, o consumo do álcool aumenta neste período. Como alternativa a manterem relações sexuais, as prostitutas consomem mais bebidas, pois ganham porcentagens sobre drinks consumidos por elas e pelos clientes.

Outro problema importante para elas são as prescrições médicas impossíveis de serem seguidas (como suspender as relações sexuais por períodos de 7 a 10 dias para tratamentos). Por último, o sexo oral entre mulheres. As prostitutas entrevistadas referiram grande preocupação com relação ao fato de manterem em média duas relações sexuais por semana com outras mulheres, geralmente prostitutas ou acompanhantes dos clientes, sem nenhum recurso para a prevenção das DST nestas situações.

Legislação
A legislação brasileira é muito ambígua com relação à prostituição. Ao mesmo tempo em que ela permite a prática, restringe-a só às mulheres e sem nenhum tipo de agenciamento ou organização. “Se duas ou três prostitutas alugarem um apartamento para fins de prostituição, isso é crime. Tudo o que uma mulher pode, se quiser se prostituir, é ficar na rua, a céu aberto, sem nenhum tipo de proteção. Elas não podem nem ao menos se organizar em forma de cooperativas”. Além disso, a legislação não prevê a prostituição de homens. “Se um homem está na rua andando de um lado para o outro, com fins de prostituição ou não, ele pode ser punido no delito vadiagem”.

“A prostituição é um problema social e legal complexo e como tal precisa ser considerado e compreendido desde o ponto de vista dos modos de organização da sociedade”, diz Luciene. E que deve ter uma abordagem ampla que considere toda a extensão do tecido social. Afinal, há um ponto importante de convergência entre travestis e prostitutas: “Diversos estudos, apontam que os clientes que procuram os travestis são os mesmos que procuram as prostitutas. Em geral são homens maduros, pais de família que se consideram socialmente heterossexuais e, não raramente, buscam negociar o sexo sem preservativo”.

Mais informações: lujimenez@usp.br 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

For security, use of Google's reCAPTCHA service is required which is subject to the Google Privacy Policy and Terms of Use.