Biologia em braile ajuda cegos

Imagine saber que existe um mundo que não se pode ver e ter que conhecê-lo através do tato. A falta de visão, descrita pelo escritor e vencedor do prêmio Nobel de literatura José Saramago em seu livro Ensaio sobre a cegueira, é a realidade que, segundo dados do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), é vivida por quatro milhões de pessoas no país. Pensando em como os cegos poderão estudar em colégios do ensino regular e aprender com o mesmo conteúdo aplicado aos demais, a professora Nadir Sant’Anna, do Laboratório de Biologia Celular e Tecidual da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), desenvolveu o projeto Produção de Esquemas em Alto Relevo para Deficientes Visuais nas Áreas de Biologia Celular, Histologia e Embriologia. Contemplado pelo edital Cidadania da Pessoa com Deficiência, da FAPERJ, seu objetivo é auxiliar estudantes do ensino médio no aprendizado de matérias como Biologia.

"Acreditamos que inclusão de fato é garantir aos portadores de necessidades especiais condições de participação em todos os setores, inclusive no acesso à educação de qualidade. Só assim aumentamos suas alternativas para inclusão no mercado de trabalho", diz Nadir Sant’Anna. Segundo a professora, o ensino de certas disciplinas exige recursos didáticos complementares para facilitar o aprendizado. Um desses casos é a biologia, que inclui a descrição de estruturas envolvidas em eventos dinâmicos e simultâneos. "Como é mais difícil entender esse conteúdo, a matéria termina despertando pouco ou nenhum interesse dos alunos portadores de deficiência visual, que acabam desistindo de seguir qualquer carreira ligada à área biológica." Segundo a professora, os modelos físicos tridimensionais que facilitariam o entendimento das imagens por esses estudantes são praticamente inexistentes ou de altíssimo custo.

Para facilitar o entendimento desses alunos, ela desenvolve objetos didáticos táteis, produzidos com material de baixo custo, como barbante, contas, vidrilhos e arames. Parte dos modelos também é feita com massa de biscuit, fácil de ser encontrada, barato, além de ser de fácil preparo e modelagem e permitir ampla variação de textura, coloração, e ser resistente ao calor. "Um modelo de cérebro adquirido em lojas custa em torno de R$ 300. O nosso sai por menos de R$ 10, já que a massa de biscuit é preparada e modelada pelos membros de nossa equipe", afirma a professora Nadir. Ela lembra que para produzir biscuit é preciso apenas cola, tinta para tecido e amido de milho e sua reprodução em maior escala pode ser feita através de moldes de silicone, parafina, gesso e até argila.

Com o uso desses modelos, os alunos com deficiência visual podem sentir pelo tato células, ou órgãos do corpo humano. De acordo com a professora, o trabalho está concentrado, por enquanto, no Colégio Estadual Thiers Cardoso, em Campos, interior fluminense. "Durante as aulas observamos que os portadores de deficiência mantinham um comportamento retraído em comparação com os normovisuais, que são as pessoas sem problemas de visão. Eles pareciam deslocados do restante da turma e eram completamente dependentes de outras pessoas, tanto para a leitura dos textos como para explicações paralelas sobre o assunto abordado pelo professor. Era uma forma de exclusão dentro da proposta constitucional de inclusão. Então, vimos que era necessário integrar normovisuais e deficientes visuais, além de lhes dar maior independência", diz Nadir.

 

Na escola, Nadir e seu grupo empregaram os modelos em turmas com aproximadamente 20 alunos, dos quais sempre dois a três eram deficientes visuais. "Os resultados foram bem satisfatórios. Uma aluna com cegueira congênita, de 24 anos, não sabia como era a genitália masculina. Com o modelo em alto-relevo, ela pôde enfim conhecer e, junto com os outros alunos, entender mais coisas sobre o sistema reprodutor. A professora contou que, antes de conhecer os modelos de vários órgãos do corpo, a aluna não fazia perguntas em sala de aula. Hoje, ela é uma das mais interessadas", diz.

Segundo Nadir, a proposta não é criar um espaço extra para o uso do material inclusivo, mas fazer com que ele seja empregado em aulas expositivas, seguindo o programa do curso. Assim, enquanto os estudantes com visão normal assistem as aulas expositivas, com apresentação de material audiovisual, normalmente exibição de slides, os alunos deficientes visuais acompanham as explicações do professor, sozinhos, podendo percebê-las nos esquemas tridimensionais auto-explicativos. Durante a aula, todos terão à disposição materiais iguais. Os modelos produzidos em biscuit têm cores fortes para estimular aqueles com baixa visão.

O conjunto de material tátil, criado pela professora como uma proposta auto-explicativa e inclusiva, evoluiu, nos últimos meses, para a criação de um Atlas Tátil, composto de esquemas em alto-relevo reproduzidos em Braillon – uma película plástica – e acompanhados de legendas impressas em braile – sistema de signos desenhados em relevo para serem lidos com a ponta dos dedos, que compões a escrita para cegos. Em vez de um livro enorme e pesado, o Atlas foi dividido em capítulos encadernados, facilitando o transporte pelos usuários. Cada capítulo é acompanhado por um CD, com esquemas coloridos para aulas expositivas e legendas digitalizadas, que permitem sua leitura no programa DosVox – software que possibilita aos cegos utilizarem um computador comum (PC) para desempenharem uma série de tarefas, adquirindo assim um nível alto de independência no estudo e no trabalho.

Com o apoio da FAPERJ, a equipe já recebeu os equipamentos para imprimir o Atlas: computadores, impressora em braile e o material para a reprodução das matrizes. Cada uma das páginas é feita em Thermoform – material que permite a produção de figuras, formas e mapas em alto-relevo. Com o auxílio da Pró-Reitoria de Extensão da Uenf, os pesquisadores estão ainda visitando as coordenadorias regionais de educação das regiões norte e noroeste fluminense para distribuir o material, capacitar professores e sensibilizar profissionais de outras áreas para a montagem de uma equipe multidisciplinar. "Cada coordenadoria receberá um exemplar do Atlas Tátil. Dependendo da demanda, poderemos ceder um número maior de exemplares" explica. "Ficamos muito emocionados com a receptividade dos alunos, saber que os estamos ajudando a enxergarem um mundo diferente é bem gratificante", finaliza.

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